Às vezes é assim que acontece. Num momento o céu é a morada. No instante seguinte o elevador desce até as profundezas do inferno. E nada temos a fazer senão tentar suportar o mal da altitude, não é verdade? Absolutamente, não.
A senhorita Adacon resignou-se diante da cruz, mas não lhe aprazia suportar o peso. Em seu íntimo ardia todo e qualquer tipo de palavrório funesto e ingrato, mas seu semblante era o da mais suprema paz. Realizava qualquer atividade que lhe fosse imposta com maestria e dentes arreganhados, é verdade. Mas o sentimento não era verdadeiro. Ninguém, em sã consciência, seria capaz de julgá-la megera ou de espírito parco; contudo, sua alma bruxuleava sanhosa, ávida por se libertar do invólucro falso. Era boa para com todos, ajudava a qualquer um e magoava ninguém. Ou melhor, quase ninguém. Consumia-se queimando dentro da própria ira a todo o momento, dilacerando aos poucos sua vitalidade. Aturdia a si mesma com o eco de sua voz retumbando nos becos de seus pensamentos. E esses eram como balas perdidas, roubando a vida de sua mente notória. De uma inteligência coruscante, seria capaz de resolver incontáveis questões em prol da humanidade. Mas não era esse o seu desejo. Embora estivesse apta a agir de forma solidária e realmente chegasse a se prestar a tal, seu maquinário cerebral trabalhava em stand-by nesses momentos. Prestava estritamente a atenção necessária e o restante era gasto com devaneios insanos. Transportava-se para um mundo bastante particular e sórdido por poucos instantes, apenas para provar um pouco de seu elixir grotesco. Amenizava o tédio de sua existência. Mas só podia se sentir completa e satisfeita quando cuidava de seu estranhíssimo hobby: torturar trastimanhos. Exatamente! Torturar trastimanhos! Quanta crueldade, não é mesmo? Ser capaz de torturar um trastimanho! Um bichinho tão dócil e inofensivo! Esse absurdo, para ela, não passava de um substituto – muito mais atraente – do tricotar. Algo que era capaz de fazer assobiando a plenos pulmões. Rodopiando e saltitando, para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá, lararirararara larariarararara, para lá e para cá. Seu sorriso iluminava o pavor dos coitadinhos e desnudava o tremor de seus corpinhos mirrados. Aqueles olhinhos súplices de nada serviam diante de semelhante desatino da natureza. Até mesmo um cego seria capaz de enxergar a ternura contida naqueles olhos. Mas não ela! Na verdade, sentia-se extasiada ao encarar o medo que ali havia. Eles eram sua parte predileta. Tanto que muitos eram cuidadosamente arrancados e tratados para serem expostos em sua “sala de jogos”. O bizarro cômodo tinha as paredes e o teto totalmente cobertos por olhos de trastimanhos. Seria uma espécie de isolamento, talvez? Muito provavelmente contra vibrações negativas advindas da porção normal do mundo. Ou o contrário, já que as vibrações ali deveriam ser extremamente maléficas. Fato é que serviam como talismãs. E realmente deveriam agir como tal, já que a senhorita Adacon jamais sofrera qualquer tipo de infortúnio em sua medíocre vida. Ao invés, era sempre muito bem quista por todo e qualquer um. Sabia lidar com as pessoas, é verdade, mas seria de se esperar alguma represália do destino em função de sua sordidez. Contudo, não há o que julgar. Certo? Quem somos para saber qual punição alguém deve receber? Além disso, não será severa pena suportar o peso de si próprio? Tudo que me ocorre é: o castigo que eu aplicar recairá sob mim. Se certo eu estiver, mil dádivas choverão. E se errar? Sempre tive medo de tempestades…
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.