Este é o trigésimo quinto dia desde que a mudança aconteceu. Está ficando cada vez pior. No primeiro dia a gente entrou em conflito com as Fúrias e a maioria de nós foi morta. O segundo e o terceiro dias passamos nos escondendo entre escombros e corpos, fugindo e por vezes contra-atacando. No quarto dia tivemos outra baixa significativa em nosso contingente por causa de divergência de opiniões, que levou ao descobrimento de nosso paradeiro e a uma inevitável nova chacina. Mais uma vez sobreviveram os poucos sensatos que perceberam ser melhor deixar a luta para depois. Foram momentos de muita tensão e gritaria. Era como estar dentro de um pesadelo. Mas por mais feridos que estivéssemos, por maior que fosse a dor que sentíssemos, nada era capaz de nos acordar.
Lembro-me de tentar acalmar um garotinho que chorava desesperado, sem saber onde estava sua mãe. Nos poucos instantes em que as lágrimas davam trégua, seus olhos azuis tremiam, me encarando, como se dentro de mim estivesse o remédio para o seu sofrimento. Mas tudo que eu podia fazer era abraçá-lo com força, balançando para frente e para trás, na esperança de que aquele movimento fosse capaz de transportá-lo para um lugar tranquilo e colorido. E a cada vez que eu fazia isso, pensando em cores, ficava mais claro para mim: de agora em diante o mundo seria completamente cinza.
Por mais que dissessem que tudo aquilo tinha como propósito evitar nosso colapso, para nós, os descartados, o colapso já havia chegado. Ao nosso redor tudo era fogo, fumaça e destruição. Carros carbonizados serviam de barricada, pedaços de casas serviam como lar. Mas não havia a menor esperança. Precisávamos mudar de acampamento a toda hora, às pressas e quase sempre sob fogo inimigo. Nossas provisões estavam chegando ao fim, bem como nossa força de vontade. A vitória já era deles. Estavam apenas se divertindo agora. O terror que havia se espalhado chegava a ser uma dor maior do que a causada pelos danos físicos. Quem já tivera o desprazer de enxergar uma Fúria e ainda assim sobreviver, não passava de um morto-vivo. Sabíamos da existência de apenas três. Sabíamos, também, que apenas uma nos perseguia, pois as outras caçavam outros grupos de resistência.
Num primeiro momento ficamos animados com a notícia: talvez tivéssemos uma chance! Poderíamos unir forças com outros rebeldes e destruir a Cúpula. Derrubaríamos a Fúria que estava no nosso encalço e então auxiliaríamos os demais. Mas essa empolgação durou muito pouco. Quando percebemos que o exército que nos atacava era composto tão somente por aquela Fúria, entramos em pânico. Como poderia ser tão poderosa? Como poderia devastar tanto em tão pouco tempo? A princípio achamos que era um boato surgido de algum sobrevivente enlouquecido. Isso porque não conseguíamos vê-la. Ela atacava de forma implacável, impedindo que tivéssemos tempo para analisar a situação. No geral só nos ocorria correr por nossas vidas e quem ficava para trás não escapava. Era impossível saber quantos estavam nos rechaçando. Mas a ideia absurda de que se tratava de um único ser foi crescendo e tomando força. Até que não foi mais possível negar a realidade: uma mulher conseguira filmar a Fúria. Ninguém sabe como ela conseguiu se esconder e captar aquelas imagens, mas aquela era a prova definitiva de que não sobreviveríamos.
Com os recursos bélicos de que dispúnhamos já seria praticamente impossível derrotar um exército de robôs menores ou mesmo de humanos. Toda a nossa perseverança e vontade de vencer estavam minadas. A situação atingira um ponto extremamente crítico e não havia qualquer forma de reverter as coisas. Pouquíssimas pessoas tinham algum parente ou amigo com o qual pudessem dividir o fardo e isso contribuía enormemente para a apatia que imperava. Acabamos passando muito tempo acampados no mesmo lugar, sem qualquer perspectiva de movimentação. Não havia mais ninguém disposto a procurar novos esconderijos ou rotas de fuga, muito menos pessoas dispostas a vigiar o perímetro.
O que no início era para ser três dias de acampamento tornou-se duas longas semanas. Sinceramente não sei como passamos tanto tempo sem sermos atacados e o único palpite que me ocorre é simplesmente que resolveram nos deixar morrer naturalmente. E essa era uma hipótese bastante válida. Creio que desde o início já poderiam nos ter exterminado. Com toda a tecnologia disponível não seria difícil fazê-lo. Mas haviam optado por utilizar as Fúrias. Talvez fosse um investimento menos oneroso. Ou quem sabe nos caçar fosse uma forma mais divertida de resolver as coisas. Seja como for, o fato é que estávamos esgotados. Rendidos. Meus ouvidos não paravam de zumbir e era muito difícil manter-me de pé. Tantas bombas e explosões haviam exigido o máximo de cada um e mesmo com aquele tempo de relativa paz as seqüelas não haviam sumido. E isso não aconteceria tão cedo. Talvez nunca acontecesse.
Era o que todos pensavam quando outro ataque veio nos fulminando. Como estávamos totalmente despreparados, quase ninguém escapou. O céu pegava fogo e a fumaça sufocava quem ainda tentava resistir. Pessoas trombavam umas nas outras, caíam mortas no chão, gritavam em desespero… Vivíamos um verdadeiro inferno! Me lembro de ter corrido o máximo que pude, sem nunca olhar para trás. Minha cabeça rodava e as vozes de todos aqueles que vi morrer puxavam-me, como se quisessem me derrubar. Minhas pernas vacilavam diante do peso daquele panorama. De forma automática, desviei-me de inúmeros obstáculos, vivos ou não. Tentei me afastar ao máximo e acabei precisando parar a uma distância que eu ainda julgava muito curta, ainda que a confusão já estivesse fora do meu campo de visão. A paisagem deserta e totalmente inóspita imediatamente me causou uma imensa ânsia de vomitar, à qual não resisti. De joelhos, eu expurgava toda a minha tensão. Eu estava completamente bambo e havia perdido a noção de tempo e espaço. Com dificuldade consegui me arrastar para dentro de um cômodo que havia restado de uma das casas da rua em que me encontrava. E aqui estou agora.
É um quartinho bastante apertado e mal ventilado, mas estou fraco demais para procurar algo melhor. Além disso, perdi minha mochila durante o ataque e não me resta um alimento sequer. Tenho plena consciência de que minha hora está muito próxima. E, por incrível que pareça, estou torcendo para que a Fúria me encontre logo.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.