…Devaneio será a última esperança dos seres humanos. Não é prepotência de minha parte afirmar que eu sou o único que pode nos salvar. Considerando-se que as decisões tomadas nos levarão ao inevitável confinamento assentido, sinto que tenho o dever de deixar uma brecha para a mudança. Minha equipe está muito satisfeita com os resultados obtidos e tem total confiança no sucesso da transição. Não me restam dúvidas de que o processo realmente será bem sucedido. Mas é isso o que me preocupa. Logo não haverá mais livre-arbítrio. Não haverá variedade de ideias. Não haverá mais qualquer possibilidade de evolução. Estaremos fadados a uma realidade estagnada e imutável.
Devo admitir que a Terra está em franco declínio, mas continuo defendendo uma mudança drástica, porém controlada por nós mesmos. Infelizmente sinto-me só nessa luta. Embora haja grupos de resistência e inúmeras personalidades influentes compactuando com minhas propostas, não há força suficiente para barrar a nova ordem mundial. Seria preciso que a Terceira Guerra Mundial começasse imediatamente, e mesmo assim ainda tenho dúvidas a respeito de seu impacto sobre a mudança que está por vir. É triste concordar com esse suicídio mental coletivo, mas não há nada que possa ser feito para evitá-lo. A única saída encontra-se dentro do próprio Sistema e é preciso que ele entre em vigor para que seja destruído. Entretanto, temo que as chances que este subterfúgio tenham para funcionar sejam tão mínimas quanto as possibilidades existentes de se ver o Hyakutake.
Basicamente o que estou fazendo é burlar todas as normas impostas e introduzir um bug bastante singular em Maia. Como tenho total acesso ao Sistema (inclusive a algumas funções bastante restritas) posso aplicá-lo de forma que passe quase despercebido. Embora seja possível notar sua presença, a princípio ele parece totalmente inofensivo, fazendo com que seja tratado com um grau ínfimo de prioridade. Assim, nada mais ocorrerá do que um simples arquivamento – uma espécie de quarentena. Entretanto, o Sistema não irá resolvê-lo, já que não tem importância; muito menos irá destruí-lo, pois é necessário mantê-lo “congelado” em um banco de dados, tendo em vista sua possível utilidade em um momento qualquer do futuro. Isso se deve ao cumprimento da diretriz que estabelece a proibição de queima de arquivos (o que é um dos poucos pontos positivos dos quais posso me valer, pois tudo será preservado, ainda que em local de sigilo máximo). Mesmo que sua implantação seja algo a princípio bastante simplório, é preciso causar um descontrole significativo na base de dados a fim de que se consiga uma ruptura mínima no firewall. Algo equivalente a míseros fentossegundos, mas suficiente para que a semente de nosso futuro seja plantada com sucesso. Isso não será problema para mim, por motivos bastante óbvios.
Dei ao bug o nome de Devaneio, talvez porque o mesmo não passe de um mero delírio de um louco esperançoso. Mas isso não importa. O que ele faz é algo realmente extraordinário. Em Maia, todos estarão sendo monitorados o tempo inteiro, e mais do que isso: a maioria de suas ações será preestabelecida pelo Sistema, de modo que não sobre tempo para que as pessoas pensem por si próprias. Além disso, mesmo que estejam pensando por si, não serão capazes de perceber que não vivem em um mundo real. Nem ao menos se lembrarão de que houve uma transição. Dessa forma, a possibilidade de rebelião contra o Sistema inexiste, já que o próprio Sistema não existe para ninguém. A princípio esse cenário parece impossível de se reverter; é uma visão bastante apocalíptica. Mas a verdade é que a vida virtual foi projetada para ser perfeita e sem dificuldades, de modo que todos mandaram o livre-arbítrio para o inferno. O que por um lado parece assustador, por outro se mostra uma ferramenta comodista bastante funcional. Mas isso não vem ao caso. O que espero alcançar através de Devaneio é uma forma de abrir os olhos de quem quer que esteja apto para tal. Basta um simples contato com o token escolhido para ativar o bug para que o mesmo comece a operar. E o que ele faz? Simples: permite que as pessoas se lembrem de seus sonhos. Só isso? Exatamente. Mas isso faz toda a diferença.
O Sistema só é capaz de atuar enquanto as pessoas estão na vigília. Mesmo que estejam em estado vegetativo imposto pelo mesmo, suas mentes são constantemente estimuladas para que possam produzir a energia vital necessária para manter ativa a inteligência artificial do Sistema. Contudo, isso é fatigante e não duraríamos muito tempo caso não tivéssemos uma pausa sequer. É aí que entra Devaneio. Em Maia, quando estivermos dormindo, o Sistema não será capaz de rastrear nossos pensamentos. Além de desnecessário (considerando a segurança do Sistema), seria uma prática inútil e até mesmo prejudicial aos vegas (ainda não me acostumei ao novo nome da espécie humana, que nada mais é do que um termo ameno substituto de “unidades vegetativas”). Digo desnecessário porque não haverá mais lembranças dos sonhos no exato momento em que acordarmos, já que a partir desse ponto o Sistema reassume o controle. E é prejudicial no que diz respeito à perturbação do momento de recuperação natural das mentes, que não pode ser substituído com êxito por qualquer outra prática. A importância do sonho em Devaneio é nos permitir transcender Maia. Mas não se trata de apenas trespassar suas fronteiras psíquicas. É uma viagem a um plano mental no qual se tem plena consciência. A um local no qual as pessoas poderão acordar, de fato. Será nada menos do que o último elo entre a plenitude do pensamento humano e o utópico futuro em que essa plenitude voltará a imperar.
A princípio a ideia parece absurdamente tola. Considerando-se que, quando acordarem, os vegas não terão consciência de que sonharam, como é possível haver alguma mudança na realidade partindo desse mundo de sonho? Esse é o ponto chave da questão. Todos os vegas possuem um prazo de validade. Esse prazo baseia-se no desgaste natural que sofrem ao longo de sua existência. É verdade que se deve quase totalmente ao ritmo intenso no qual trabalham para fornecer energia ao Sistema e, também, à deterioração natural do corpo. Mas há uma mínima parcela atribuída aos resquícios do que ocorre nos sonhos. É como se, aos poucos, a mente começasse a se fragmentar. O impacto é muito pequeno, de modo que o Sistema o despreza. Contudo, através dos estímulos corretos, em teoria, é possível causar sensíveis alterações na realidade individual do vega em Maia. Na verdade, Devaneio é um local onírico de reunião dos vegas, no qual há programas específicos preparados para conscientizá-los a respeito da necessidade de se rebelar contra Maia. É uma espécie de ponto direcionado, para o qual os vegas são transportados quando não estiverem sendo controlados. O que acontece em Devaneio será sempre lembrado quando se estiver em Devaneio, mas apenas pequeníssimos detalhes podem sair. E isso demanda um tempo muito grande. É preciso que o vega seja muito bem preparado. Sem certa carga de conhecimento, será impossível obter algum êxito. O sucesso depende da vontade do vega agir em prol da causa, bem como de seu treinamento adequado.
Nos últimos meses tenho conseguido avançar significativamente na programação de Devaneio e suas diretrizes. Há um plano bem estabelecido para derrubar Maia e todas as variáveis possíveis estão sendo consideradas. Tem sido difícil trabalhar nisso devido ao cargo que ocupo e à relativa desconfiança a mim atribuída, tendo em vista minha explícita insatisfação quanto à implantação da TerraNova. Contudo ainda possuo certas regalias, já que sem mim não será possível ativá-la. Venho contando com a sorte e esgueirando-me o máximo que posso para esconder meu trabalho. Temo não conseguir concluí-lo ou mesmo ser pego, o que seria muito pior. No ponto em que o projeto se encontra, poderia ser implantado, ainda que não viesse a funcionar plenamente. Por questões de segurança instalarei a versão beta de Devaneio em Maia daqui a três dias. Caso tudo corra bem, a atualização para a versão definitiva será efetuada dentro de exatos dezenove dias.
Como já mencionei anteriormente, creio ser essa a única esperança que temos.
Trecho de mensagem de Marvin Pitts enviada para Yorick
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.