Preciso encontrar o Guará. O último guará vermelho. E enquanto eu me escondo aqui nada acontece. Inatividade inútil!
O céu ostentava um tom púrpura intenso, desafiando a beleza de qualquer dia de verão. Uivo do vento assobiado como do-ré-fá-si. Balançavam as árvores gigantes na arritmia do compasso cego. Um-dois-três-quatro; Um-três-dois-dois… E as matizes difratadas através da janela da casa abandonada davam vida ao chão de tábua corrida. Atrás da parede aguardava o momento. Então sem sentido, pois o momento é agora. Mas aguardava. A calça jeans surrada e a camisa azul escura de mangas compridas não entravam no desfile de uniformes de guerra. Vou sair. Vou sair agora. Levantou-se furtivamente – um tiro de raspão no braço esquerdo. A adrenalina suplanta a dor. Corre. Corre em direção a outro cômodo enquanto a chuva ácida de munição cai. A beleza da luz adentrando o cômodo ofuscava a violência do ato.
Em poucos instantes viu-se livre da turbulência sonora. Um belo sprint até o aposento seguinte levara-o a outra realidade. Sem a AK-47 e agora munido de papel e caneta, assustado ao perceber-se cercado por inúmeros peixes gigantes e coloridos, que flutuavam dançando ao som de Björk. Que belo estado emergencial ele experimentou! E agora devo catalogar cada espécie. E agora devo identificar as diferenças entre elas. E agora devo amar a todas igualmente. E como não conhecia absolutamente nada de peixes, tratou de nomeá-los com o coração. Aos poucos deu sentido à vida de inúmeras folhas brancas. E sua caneta possuía tinta eterna. Crystalline. Assim chamou a espécie azul-rosada de formato losangular. E quis chamar todas assim, pois esse era um belo nome. Mas existem diferenças. E então observou seus dedos perderem o tato. E se preocupou à medida que adquiria guelras e barbatanas. Odiou a falta de água. Rastejou ou… barbatanejou até uma cachoeira de suco de maçã que se encontrava a exatos nove metros de distância. Caiu. Queda livre sem retorno.
Enquanto voava rumo a uma morte muito molhada, transformou-se em uma bela harpia. Mas ainda não sabia como se aproveitar de suas asas. Acabou por cair de cabeça em uma enorme pedra de algodão, vindo a se transfigurar novamente em um ser humano. Confundindo o zumbido em sua mente com a gritaria que surgia de um local próximo, não deu importância ao que estava acontecendo. Zonza e cambaleantemente tateou com os olhos semicegos e semicerrados o caminho. Para que tudo fizesse sentido, o destino o levou ao encontro da confusão. Desperto pelo choque, partiu para cima dos covardes monstros que espancavam a pobre criaturinha. Obviamente não era um oponente à altura. Foi arranhado por garras e mordido por dentes afiados. Teve a língua arrancada. Teve o crânio esmagado. A criaturinha – já sem vida – sorria seus dentes podres em agradecimento pela solidariedade. Inutilmente. Ainda assim se sentiu na obrigação de se levantar. Fingiu-se de morto até que ele e o cadáver estivessem a sós. Postou-se de pé diante de uma poça inimaginavelmente verde de sangue e quis vomitar todos os seus órgãos. E foi o que fez. Instantes depois voltou a fazer parte da teia.
Sem perceber deixou espinhos controlarem a razão. Sentiu-se atado a coisas fúteis e tentou se desvencilhar. Em vão. Sem pensar deixou o tempo tratando de transformar o que havia sobrado em uma paz ilusória e violenta. Sem se mover, chegou a um templo feito de palha. Este possuía ídolos de palha e bancos de palha. O chão era feito de algo terrivelmente gelatinoso. Whatever. Fechou os olhos para enxergar cinco monges que flutuavam segurando cada qual um objeto diferente. Eles eram idênticos. Suas roupas também. Suas barbas desgrenhadas também. Sua falta de cabelo no centro da cabeça também. Cada um carregava uma taça. Cada taça continha um líquido de cor vivaberrante diferente. De súbito glupeglupeou cada uma sem a menor cerimônia. Educação escassa. Ao fim, babando, teve a roupa colorida por tons diferentes. Sentiu-se zonzo até que caiu. E dentro de sua mente cada monge gritava milhões de ensinamentos provenientes de cada taça. Descobriu que beber não ajudaria a adquiri-los. Muito pelo contrário. Beber trouxe mais sede. E então se levantou num átimo. Novamente tomando para si as taças – agora vazias – leu as inscrições entalhadas. Perseverantia, scientia, fide, solidarietatis, praesidio. Não entendeu porra nenhuma. Sentiu o estômago se contorcer. Sentiu vontade de explodir. Imaginou-se autodigerido. Gritou de dor e puxou os cabelos com uma força assustadora. Até que arrancou a tampa da cabeça. E seu cérebro ficou à mostra. E três pássaros com cara de tamanduá pousaram em sua cabeça sem tampa. E teve o intelecto devorado. E já sem razão deixou-se guiar em busca de mais doses daqueles elixires melífluos.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.