Tomou-o para si. Triunfante. Encontrou-o embolorado no interior de um Tolstoi. Indigente, renasceria em meio às bibliotecas do anonimato. Desarrazoado, apertava-o temendo que uma brisa o levasse. Entre sublime e hediondo – petrificante. Anti-estagnário. Releu pela décima terceira vez; suando neve. Dobrou com cuidado. Guardou na tiracolo não sem conferir o fecho algumas vezes. Apressado atravessou o labirinto de estantes e locou o bem-aventurado guardião. Livre de suspeitas.

Sensação de ser perseguido e vigiado fez companhia até o lar. Destrancou. Abriu e fechou rapidamente. Trancou a pesada porta de madeira de lei. Imaginou não estar só. Vasculhou os aposentos. Conferiu as janelas. Largou-se no sofá verde abacate – rasgado – de dois lugares. Retirou cuidadoso o texto. Começou a ler baixinho, mas teve medo de gnomos copistas. Incontida felicidade.

Interrompeu de súbito. Olhou sobre o ombro, mirando os enfeites de gesso que bisbilhotavam. Virou-os todos na direção oposta. Agora leriam somente as entrelinhas da parede. Livre de perigos, absorveu o máximo e tratou de adotá-lo como filho de seu próprio punho. Manuscrita (des)idoneidade. Veloz. Caligrafia horrível e singular. Riu-se de si mesmo: ladrão de palavras. Deu de ombros e rasgou o original. Não bastasse ateou fogo. Amassou e homogeneizou as cinzas. Deu-as de comer para suas flores. Brotariam mudas de sabedoria. Bobagens gratuitas.

Cantarolante, banhou-se. A chuva artificial absolvia as impurezas, le(a)vando o pecado. Enxuto, vestiu os melhores trajes. Perfume especial, relógio no pulso. Fez algumas ligações. Saiu. Confiante e seguro. Falas de cor. Vislumbrou fama. Imaginou-se novo marajá de Lugar Nenhum. Tropeçou – prelúdio? Andou mais devagar, desejando um atraso esnobe. Sucesso. Em chegando ao local, olhares curioso-ansiosos devoraram-lhe famintos. Aproximou-se do microfone absorvendo flashes. Testou seu funcionamento. Microfonia e silêncio. Microfonia. Silêncio.

Não saudou. Desnecessário. Já sofria do mal do seachismo. Tirou do bolso esquerdo da calça o manuscrito. Fez um solene gesto de desdobrar. Inflou o peito de arrogância e iniciou a leitura. Tom grave, altivo e gestos exagerados. Os trovões atingiam os ouvidos causando arrepios. Boquiabriam-se os presentes. Minutos se passaram antes do fim. Arrastaram-se com uma lassidão agonizante. Desabrocharam-se suspiros e murcharam-se calafrios. … a essência do ser. Irromperam em aplausos. De pé, não conseguiam parar.

Mais algumas palavras e a consagração. Deixou para trás uma multidão perplexa e em polvorosa. Saiu de cena como herói. Improvisaram-lhe um camarim (de muito requinte) para o qual se dirigiu. Abriu a porta, fechou a mesma, sentou-se de frente para um espelho. Admirou a própria imagem. Tagarelou com seu reflexo, repetindo zombeteiramente alguns comentários que havia percebido durante a leitura. Gargalhou gostosamente, sem se dar conta de que seu reflexo não o remedava. Não parou enquanto havia fôlego. Foi acometido por calor e vermelhidão e, só então, sossegou.

Quando voltou a mirar o espelho, gritou. Bateram à porta preocupados Não foi nada. Fechou os olhos e contou até sete. Reabriu-os. A imagem não mudara. Uma face desconhecida materializara-se em substituição à sua. Expressão percuciente e inquiridora. Sua não era – não possuía tanta severidade. Mas também não era de todo tão diferente assim. Você é o dono do texto. Não, agora ele é seu.

Sentiu-se um tanto quanto esquizofrênico conversando daquele jeito com o espelho. Que diferença faz? As ideias foram transmitidas. O conteúdo foi absorvido. Terá sua tão sonhada revolução. E quem disse que sonhei? Aquelas palavras são completamente estúpidas. Muito presunçoso de minha parte. Devo admitir que é fantástico. Rendeu-me o título de sábio visionário. Uma visão egoísta e deturpada. O mundo hoje encontrou seu fim. Fim? Esse é apenas o começo de uma nova realidade. Por que acha que não o divulguei? Por medo, com certeza. Falta de coragem. Não. Por sorte. Percebi a tempo o que estaria por vir e apaguei da minha mente aquelas palavras. Mas vejo que o serviço não foi completo. Por que não o destruiu? Tanto receio e não o destruiu. Desconfio que hoje realizei o que você não foi capaz de fazer. A junção perfeita. Sua brilhante ideia e um meio apropriado para transmiti-la. Não. Fui covarde para destruir o texto, devo admitir. Mas isso não lhe dá o direito de tomá-lo para si e expor da maneira como fez. Já foi feito. Não há remédio. Apenas assista a colheita de seus frutos. Você não compreende. Nem todos estão preparados. Ainda não sobrevivem sem seus carros alegóricos. Besteiras e mais besteiras! Você deixou sua inteligência no papel… E a culpa é minha. Não, meu amigo. O prêmio é nosso!

Levantou-se da cadeira e deu as costas para o espelho. Caminhou soberanamente em direção à porta. Já do lado de fora dos aposentos, achou estranho não haver ninguém à sua espera. Vasculhou o imenso e inóspito anfiteatro. Chegou até a porta de entrada. Saiu. Não acreditou quando viu carros batidos, o trânsito parado e o chão coberto de sangue. Corpos e mais corpos caídos. Facas, revólveres e canivetes. Os que ainda sobreviviam estampavam sorrisos em suas faces tingidas de vermelho. Dançavam em meio à chuva de sangue. Realização. Com as mãos trêmulas não foi capaz de guinchar quando teve a jugular cortada. Não viu quando o último ser humano de pé atirou na própria cabeça.