Tentaram me alertar. Não dei ouvidos. Mesmo que quisesse, não seria capaz. Encontrava-me completamente enfeitiçado. Sua voz era maravilhosa, não há dúvida. Entretanto, mesmo sendo sua arma mais poderosa e persuasiva, posso afirmar sem medo que não foi o que paralisou meu coração.
Vê-la indefesa, em sua forma mais pura e inocente, isso sim, me destruiu. Ali ela estava. Frágil. Aos prantos. Perto das rochas e sem roupas. As ondas quebravam já sem força, atingindo sua delicada cintura. Mesmo molhados seus cabelos possuíam um brilho indescritível. Receoso, fui me aproximando devagar. Ainda não acreditava na existência de sereias, mas meus amigos insistiam em encher minha cabeça com suas invencionices e isso acabara me abalando. Ainda assim avancei.
Hesitei ao ouvir os gritos deles, mas aquele choro cortava-me tão profundamente que eu não tinha escolha senão avançar. À medida que me aproximava, sentia o ar ficar mais pesado e meu corpo perder consistência. Meus pés descalços pisavam algo mais macio do que areia úmida. A cada passo dado, mais distante do mundo eu ficava. Não demorou até que eu ouvisse apenas aquele doce lamurio.
As nuvens haviam crescido de forma incrível e descido ao meu encontro. Logo o mundo adquiriu um tom alaranjado e suave, como se a Terra fosse ficar estagnada naquela posição para sempre. Nem mais uma rotação. E como se o tempo de fato não mais existisse, meu coração parou de bater. Não era mais necessário respirar. Minha expressão de precaução e preocupação desapareceu subitamente, cedendo lugar a um sorriso leve e espontâneo. Um lampejo de felicidade brotou de meus olhos quando, finalmente, alcancei-a.
Ainda chorava, é fato, mas isso se tornara secundário. Permaneci de pé, estático, apenas observando aquele ser sublime. Tão linda! Tão perfeita! Uma aura divina emanava de cada milímetro de seu tão bem desenhado corpo. Nada no mundo se igualava a ela. Já não havia praia. O mar havia evaporado. Apenas ela. Exuberante. Estupefato como estava, demorei muito até lembrar que ela precisava de ajuda. Estava realmente consternada, pois sequer notara minha presença. Era preciso acordá-la, resgatá-la de seu tormento.
Ajoelhei-me vagarosamente e estendi minha mão direita em sua direção, mas não consegui tocá-la. Uma invisível barreira feita de uma peculiar liga de ansiedade, medo e espanto, formara-se entre nós. Por alguns instantes mantive minha mão suspensa, sem saber se eu possuía forças para prosseguir. Minha coragem havia se transformado em receio e eu não sabia o que fazer para reverter a situação. Percebi o mundo perder um pouco de sua cor quando o choro se fez mais nítido em minha mente. Sofregamente um pensamento apoderou-se de mim: você é tudo o que ela tem agora.
Quebrando todos os meus paradigmas, avancei. Toquei suavemente o rosto. Foi tão sutil que eu mesmo quase não a senti. Fechei os olhos e torci o nariz esperando que ela fosse gritar ou que o choro se tornasse mais intenso. Isso não aconteceu. Como se minha mão fosse dotada de poderes sobrenaturais, logo que a toquei ela deixou de chorar. Afastei seus longos cabelos e enxuguei suas lágrimas. Ainda de olhos fechados percebi quando ela deixou escapar um breve suspiro. Interpretei como alívio. Ocorreu-me talvez se tratar de impaciência, descontentamento, ou qualquer outra sensação desagradável, mas preferi manter meu pensamento positivo. Deixei-me acariciar a pele macia de sua face sabe-se lá por quanto tempo.
Aos poucos sua respiração adquiriu um ritmo mais ameno. Senti que a estava tranquilizando. Continuei acariciando seu rosto, sem pensar no que viria depois, ou mesmo no que havia acontecido a ela. Minha própria existência perdeu importância. Algo em mim parecia querer explodir e eu não conseguia pensar em absolutamente nada. Ficamos ali, alheios à realidade, e, para mim, aquilo era a felicidade.
Deitada, sem abrir olhos, podia muito bem estar morta, mas sua respiração era perceptível. Eu observava o movimento ritmado de seus seios enquanto a noite se aproximava devagar. Intenção de me mover eu não possuía, mas, logicamente, mais cedo ou mais tarde teria de fazê-lo. E foi necessário mais cedo do que eu desejava. Saindo de seu estado meditativo e livrando-me do meu torpor, ela abriu os olhos. Abriu-os devagar, como se precisasse se acostumar à luminosidade. Logo percebi que não era esse o motivo. Ao fazê-lo, tudo se iluminou. O ambiente, esse sim, devia se adaptar à beleza daquele olhar. Foi preciso que o sol renunciasse a seu posto de luz suprema, chegando a se deitar ofuscado.
É de se imaginar como fiquei. Pensei não ser possível me impressionar mais. Enganado. Assim que me encarou senti o sangue borbulhar. Minha mente ultrapassou o estado de encanto e atingiu o de êxtase. Não tardou a se metamorfosear em histeria. Desejei um ósculo e também uma colher de sumiço. Dividi-me entre abraçá-la e fugir apavorado. Senti que invadia minha alma – incólume. Não a comovia ou afetava. Trêmulo, tremedrontado.
Paralisei. Sorriu milhões de dentes pontiagudos, língua roçando os carnudos lábios. Levantou-se e me olhou de cima – ajoelhado. Impulsionou-me a ficar de pé, abraçando-me candidamente. Incorrespondível, deixei os braços junto ao corpo. Involuntária demência. Depois de já roubado o calor, soltou-me. Beijou-me demoradamente na testa, depois no pescoço. Sussurrou algo que não compreendi e foi de encontro ao mar: pés; pernas; cintura; cotovelos; cabelos agora curtos. Devaneante, admirei a esmo o baile das ondas.
Lobotomizado.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.