É muito comum não prestar atenção nos detalhes do dia a dia. Seja por estarmos ocupados em uma conversa, seja por estar com a cabeça em uma reunião que vai acontecer em meia hora. Desculpas é o que não faltam para isso. Pare para pensar e veja quantas vezes já passou por um amigo na rua e nem percebeu que era ele? Já fiz isso inúmeras vezes. É frequente, aliás.
Se a gente passa batido até por amigos, imagina por quem não temos contato. Não estou falando de estranhos na rua, mas de vários profissionais que encontramos todos os dias, como porteiros, faxineiros, lixeiros, caixas, atendentes. Profissões essenciais, mas que acabam sendo invisíveis para os clientes.
Trabalhei por uns dois anos como caixa de um restaurante em um clube do sindicato de faxineiras e porteiros. Fui, por muito tempo, a pessoa “invisível” na relação com outras pessoas que sempre são “invisíveis”. A diferença é que quando as pessoas estão na posição de dominação (vulgo “estou pagando pelo serviço”), elas agem do mesmo jeito que as pessoas fazem diariamente com elas. É impressionante, porque as possíveis frustrações diárias são levadas para o final de semana e jogadas em cima de quem está em uma posição “inferior” à deles.
Gosto muito de uma frase do Sirius Black sobre a importância de saber como as pessoas tratam seus inferiores para que possamos de fato conhecê-las. A gente conversou muito lá no restaurante para tentar entender porque essas pessoas agiam assim. Uma das teorias, a mais aceita entre a gente, era que elas eram tão maltratadas ou ignoradas nos empregos delas, mas não podiam fazer nada a respeito, que, quando tinham oportunidade, faziam exatamente igual de modo involuntário.
Nada justifica, lógico. A filosofia de trabalho do restaurante sempre foi tratar bem qualquer pessoa que aparecesse, sempre com um sorriso no rosto. Aos poucos você vai conhecendo os frequentadores e passa a tratá-los pelos nomes. Aos poucos a relação fica mais próxima e você vê que aquela couraça inicial era uma simples defesa.
Em busca de identidade
Escrevi isso tudo porque hoje fui tirar a segunda via da carteira de identidade. Filas enormes, funcionários tendo que atender milhões de pessoas ao mesmo tempo, todos impacientes tentando resolver seus problemas. O cenário perfeito para ignorar/tratar mal os funcionários.
Desde que comecei a trabalhar no clube, tento tratar todas as pessoas que me atendem com o máximo de simpatia. Hoje deu para perceber dois exemplos de funcionários e como a simpatia agiu em cada um deles.
A primeira moça sequer respondeu meu “bom dia” quando sentei na frente dela com os meus documentos. Pegou os papéis, registrou no computador e não olhou diretamente para mim nem quando me deu as instruções para o próximo passo (“é a mesma senha, no mostrador eletrônico, na linha azul”, em uma voz mecânica de quem falou isso o dia inteiro). Agradeci e saí.
Não demorou nem um minuto e minha senha foi chamada. Fui para o Caixa 2 e quem estava lá era uma moça de sorriso fácil. “Senha MB49?”. “Eu mesmo”. Ela logo engatou um papo perguntando se tinha demorado muito na fila; que as senhas MB demoravam mais que as AB, mas ela não sabia o porquê; que quando ela trabalhava ajudando a galera com as senhas ela questionava isso para os superiores, eles não respondiam; perguntou do livro que eu estava carregando; fez uma brincadeira com o papel da identidade e a digital.
Enfim, foi super simpática. Nos poucos minutos em que manuseava meus dedos pela tinta para registrar minhas digitais, deu para conversar um bocado. Diferença gritante com relação à atendente anterior. Mas a parte mais legal foi quando eu estava indo embora.
Virei para ela e agradeci: “Muito obrigado, Rose*. Até mais”. Ela abriu um sorriso e na hora percebi um detalhe importante: no meio daquele monte de gente que ela deve ter atendido, da minha pressa em sair daquele lugar, me preocupei em ler o crachá e chamar ela pelo nome. Ela não era só mais um ali trabalhando, mas ela era a Rose. Única e com um belo sorriso no rosto.
Aquele sorriso valeu pelo dia inteiro, pois modificou um dia comum de duas pessoas.
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Todas as fotos deste post foram retiradas deste Deviantart. Vale a pena o clique e conferir o trabalho do cara, que é muito bacana!
*Por ironia, o nome da mocinha que me atendeu fugiu completamente da minha cabeça enquanto escrevia este texto. Se não for Rose, é algo muito próximo disso. Mas também pode ser Marina ou Cláudia… não dá pra confiar na minha memória.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.