Quando abriu os olhos, viu a casa da avó novamente. Muro baixinho, paredes coloridas e aquelas janelas gigantes. Ainda do mesmo jeito que se lembrava quando era uma criança, quando corria para cima e para baixo com os joelhos esfolados. Lá ele havia sido feliz.
Mas a vizinhança era outra. Do lado, a casa onde morou quando precisou se mudar, logo após a morte da avó. Foram tempos difíceis aqueles. Devia ter o quê? Sete, oito anos? A depressão da mãe, que nunca passou. Criou o filho sozinha. Foi forte, mas tinha suas recaídas. A casa cinza, sem brilho. Pequena. Alugada a muito custo.
– Tem certeza de que quer continuar com isso? – perguntou a mulher que estava do seu lado. Com um belo vestido azul, lembrava uma vizinha que ele tivera quando se mudou para o Rio de Janeiro. Linda. Talvez sua primeira e única paixão platônica.
– Tenho. Preciso disso, não é?
– Nem sempre. Alguns preferem simplesmente entrar na própria imaginação e fica por lá. Que eu saiba, não há vida que se compare com a imaginação pura. Vivendo lá, você será livre. Isso é, se você realmente desejar isso.
– Desculpa, mas preciso enfrentar. Não vou conseguir me refugiar por lá. Você me conhece mais do que ninguém, sabe que eu não aguentaria. Antes de seguir em frente, quero ter certeza de que valeu a pena.
Na vizinhança, os amigos de infância brincavam de corre-corre, pique-esconde, pula corda e paulistinha. O tempo passava ao redor dele. A medida que cresciam, pôde ver no que cada um se transformou quando adulto. Gente que ele não via há décadas. Engenheiros, vendedores, donas de casa. A maioria morta a essa altura.
– Você sabe que pode se poupar disso tudo, não é? Venha comigo e você vai estar em um mundo de pura imaginação. Vai estar seguro para sempre.
Enquanto os amigos envelheciam, viu seu primeiro escritório. Lembrava até hoje do tanto que tinha trabalhado para pagar a faculdade de contabilidade. Formado, construiu uma carreira sólida. Pôde ajudar a mãe, que tanto se sacrificara por ele e já estava completamente debilitada pela depressão.
– Agora vem a parte mais difícil, você sabe disso. Vem comigo. Vamos começar uma rodada viajando no mundo de minha criação? Se você quiser vislumbrar o paraíso, é simples. É só olhar em volta e o ver.
No caixão em sua frente, a mãe. Ele não tinha nem 30 anos quando precisou se despedir do seu último vínculo familiar. Enterrou junto com a avó que tanto amara. Depois daquele momento de dor, as coisas voltariam ao normal. Os próximos passos eram de alegria, ele sabia disso.
– É a hora perfeita pra sairmos daqui. É até fácil suportar a dor. A saudade da alegria é que é realmente devastadora. Feche os olhos, vamos lá. O mundo da pura imaginação está só esperando por você.
Foi quando ela surgiu na sua frente. Gabriela, sua esposa, sua companheira até o fim. A imagem lembrava a Gabriela de uns 35 anos. Bela. Usando aquele pijama que ele achava sexy, ela chegou perto dele e deu uma risadinha em seu ouvido. Saiu deixando nada mais do que saudade para trás.
Em seguida vieram os filhos. Imagens deles ainda no berço, a primeira fralda trocada, os primeiros passos, os machucados. A escola, as namoradas, as formaturas, os netos. As alegrias de uma família feliz, no sentido mais puro da palavra. Os olhos encheram de lágrimas.
– Está vendo? É uma sensação muito pior, eu avisei. Vem comigo. O que veremos vai desafiar qualquer explicação. Você não precisa se sentir assim.
Olhou para o lado e viu sua paixão platônica sorrindo, com a mão estendida. Fechou os olhos por um momento e viu a família inteira reunida na cama do hospital. Lembrou do último beijo que recebeu da esposa. Escutou nitidamente um “Vai em paz, pai” vindo do filho mais velho.
– Agora estou pronto – disse, olhando no olho da morte. A mulher de vestido azul deu um sorriso terno e segurou sua mão.
– Agora sim você está pronto. Vamos embora.
Pra ler ouvindo: Pure Imagination – trilha de A Fantástica Fábrica de Chocolates
Esta crônica faz parte do Music Experience
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.