Sempre passava a virada de ano com a família, em uma tradição seguida à risca até pelos parentes mais distantes. Quem faltasse era motivo das fofocas e dos olhares tortos nas outras festas. A família era impiedosa. Seus pais, então, eram os mestres da língua afiada. Tinha certeza que se ousasse faltar ouviria reclamações para o resto da vida. Se bobear, sua punição no inferno seria ouvir a voz dos pais dizendo que ele não foi à festa de Ano-Novo. Como não era de brincar com o destino, resolveu não arriscar uma fuga.
Para completar, a noite do Réveillon estava particularmente feia. Excesso de nuvens ocultando as poucas estrelas do céu, uma ameaça constante de chuva. Nem a luz da lua conseguia romper aquela barreira de depressão. Ele sabia disso porque não estava dentro de casa junto com os parentes, mas sim deitado de costas na laje. Com as mãos entrelaçadas por trás da nuca, estava há quase uma hora pensando no ano que passou.
Estar ali em cima foi um golpe de sorte. O pai havia colocado uma escada para subir e arrumar algumas coisas na laje e se esqueceu de tirar. Quando ele viu que ela estava lá, foi o tempo de pegar umas comidas, uma garrafa de vinho, subir e esconder a escada junto com ele. Já que não poderia passar o Réveillon longe de casa, pelo menos passaria sozinho.
Ao fundo, conseguia ouvir a movimentação dos parentes, todos em um corre-corre constante para arrumar os detalhes que faltavam. Alguém – sua tia, talvez – gritava em busca do espumante. Barulho de taça sendo quebrada, uma palavrão exclamado com raiva por um dos primos e seu pai pedindo mais uma taça. Quando o primeiro clarão de foguetes surgiu a sua direita, olhou de relance para o relógio: “Alguém está adiantado, faltam cinco minutos ainda”, disse em voz alta. Ninguém dera falta dele ainda. Ótimo.
Não estava no clima para erguer taças e brindar. Não este ano, não com tantos problemas ainda rondando sua mente. A última coisa que queria era ter parentes bêbados desejando coisas boas sobre sua (ex?)namorada e sobe o (ex?)trabalho. Tudo de mais sólido que tinha havia desmoronado naquele ano de bosta. O pior era saber que todos os problemas ficaram sem uma resolução definitiva. Que ela ficou de ligar e nunca mais o fez. Que aquelas férias coletivas eram o reflexo da crise financeira e que era quase certo que ninguém ia voltar.
Devia haver um acordo entre as pessoas dizendo que assunto nenhum devia ficar inacabado até 31 de dezembro. Era torturante. Queria que meia noite chegasse logo para fingir que sua vida deu um reset e que tudo fosse esquecido. Era uma ilusão vaga, ele sabia disso. Os flashes dos piores momentos rondavam sua cabeça como uma propaganda da época de ouro da MTV: frenéticos, sem sentido e que lhe davam dor de cabeça.
Ainda estava deitado quando os fogos começaram. “Meia noite, é isso”, disse, sentindo o celular vibrar. Não era possível. Não agora. Era um daqueles problemas não resolvidos. O pior de todos. Era “ela”.
Pegou a garrafa de vinho e deu um gole antes de atender. “Alô?”. Só o silêncio vinha da outra linha. “Você sabe que a gente precisa conversar. Fala alguma coisa!”. Mais silêncio. “É assim, vou desligar então. Um feliz Ano-Novo para você também.”. O barulho de choro ficou aparente do outro lado e uma voz chorosa completou “Eu só queria ouvir sua voz. Me desculpe” e desligou. Ele tentou ligar para ela de volta, mas caiu direto na caixa postal.
No céu, os fogos de artifício ainda não tinham terminado. O novo ano mal havia chegado e já testava seus limites. Ainda bem que tinha muitos goles de vinho pela frente.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.