“Bom dia, campeão! Pega uma Original pra mim, por favor.”

“Só isso, chefe?”

“Você tá engraçadinho hoje, Tião… aquela porçãozinha também, você sabe. Mas capricha porque semana passada veio mirrada demais.”

O garçom deu um sorriso cúmplice e saiu para providenciar o pedido. O mesmo bar. A mesma cerveja. A mesma porção de fígado com jiló. O banco vazio ao seu lado também era o mesmo. Desde aquele janeiro de 2015, precisou recriar uma rotina. O despertar do Mercado Central voltou a ser parte de seus sábados. Aos poucos, redescobriu o prazer no movimento do Centro. As pessoas chegando. Os amigos se encontrando. O burburinho que tomava conta dos labirínticos corredores. Os barulhos de gente. De bicho. De vida. Sentava-se sempre no mesmo lugar, de frente para a entrada da rua Santa Catarina. Como a esperar alguém. Alguém que nunca chegava.

Depois de tanto tempo, estava quase se tornando uma figura folclórica do Mercado. Vinha no mesmo horário e ficava no bar comendo a porção e tomando algumas cervejas. Às vezes vinha um amigo e pedia mais um copo para dividir com ele. De vez em quando, um estranho sentava do lado e ele acabava puxando assunto. Ele era boa praça, mantinha a pessoa entretida. Fazia todo mundo dar gostosas risadas. Mas falava pouco de si. Nem quando a Alterosa foi fazer uma reportagem sobre as figuras do Mercado, revelou muito. “Gosto de ficar aqui”, ele disse. E era isso. Quando se dava por satisfeito, saía para comprar comida para seus peixes, escolhia um pedaço de queijo minas em uma das bancas, pegava umas frutas e ia embora.

Entrava e saía sempre pela portaria da Santa Catarina. Para quem não é acostumado com o Mercado, isso parece impossível. Há belo horizontinos, nascidos e criados na cidade, que nunca conseguiram entrar e sair pela mesma portaria. Mas ele conseguia toda vez. Assim, Tião era sempre o primeiro que ele via e o último de quem se despedia. Davam um aceno de cabeça na saída e cada um seguia o seu dia. Mais um sábado.

O garçom, por sua vez, também era uma figura tombada pelo patrimônio histórico de Belo Horizonte. Atendia naquele mesmo bar há ninguém sabe quantos anos. Conhecia todo mundo pelo nome. Sempre com um sorriso no rosto. E era o único que sabia a história dele. O coração não sabia mais contar os dias, a cabeça já não ajudava tanto, mas se lembrava bem das primeiras vezes que ele esteve ali.

Era moleque ainda, nem barba tinha. Devia ter acabado de entrar na faculdade, mas era um dos mais barulhentos daquele grupo de amigos que passava todo sábado no Mercado depois das aulas, quando o prédio de Engenharia da UFMG ainda era no Centro. Sempre paravam ali para beber uma, duas, três ou quantas o dinheiro de universitário desse. Ele costumava se sentar sempre no mesmo banco, de frente para a portaria. “Para ver o movimento das gatinhas, Tião”, costumava dizer. O garçom sorria e servia as cervejas.

Não se lembrava, porém, de quando ela começou a frequentar o bar. Ele já devia estar nos últimos períodos da faculdade, isso tem certeza, porque já tinha alguns anos que o grupo de amigos frequentava ali. Cada vez menos gente, mas sempre presentes. Mas se lembra bem do sorriso dele se iluminando toda vez que ela aparecia pela portaria da rua Santa Catarina. A silhueta recortada pela claridade que vinha do exterior, o movimento automático de tirar os óculos escuros e pendurar na blusa, entre os seios. Os dois davam um selinho, ela sentava-se do lado dele e pedia a porção tradicional do bar.

“Essa mulher me deixa louco, Tião. A Tetê Espíndola tinha razão quando falava que a pessoa amada é o sol de uma noite sem fim. Ela é isso pra mim. Acendeu o que sou, renasceu tudo em mim”, ele poetizou. Apaixonado. Com o passar dos anos, viu que era realmente um caso do acaso bem marcado em cartas de tarô. Os dois se davam muito bem e passaram a ser frequentadores assíduos do bar, com ou sem os amigos. Toda semana estavam lá. Viraram clientes fieis e o garçom fazia questão de ser aquele que os atendia. Sabia do que gostavam, como gostavam. O ponto do fígado, a temperatura da cerveja. Aos poucos, foram ficando amigos.

Quando ainda eram apenas namorados, costumavam chegar separados. Ele chegava antes, ela vinha um pouco depois. Ele ficava ansioso esperando ela cruzar a portaria. Às vezes já tinha bebido uns dois copos antes dela aparecer. Tião aproveitava o pouco movimento daquele horário para conversar com eles. A situação do Galo no campeonato, os assuntos da semana, a relação com ela. Falavam de tudo um pouco. Quando ela chegava, o assunto continuava. Mas os dois tinham a atenção toda um para o outro e se bastavam. Tião, inclusive, foi um dos primeiros a saber quando eles decidiram se casar. “Hoje sei que achei quem eu tanto procurava. Meu amor é você”, ele se declarou para ela naquele banco, enquanto levantava o copo a fazer um brinde no ar.

Anos se passaram assim. Aquele casal apaixonado, que gostava de uma cerveja, um fígado com jiló e um bom papo. Por isso que, quando deixaram de aparecer por uns meses, Tião ficou preocupado. Não era do feitio deles fazer isso. Se sabiam que não iriam na semana seguinte, costumavam avisar. Uma viagem, um compromisso agendado. Sempre falavam antes. Então, quando ele cruzou a portaria sozinho, Tião ficou preocupado. Os olhos marejados do amigo entregaram que algo estava acontecendo.

“Ela não vai resistir, Tião”

“Como assim, patrão? O que aconteceu?”

Contou que os últimos meses tinham sido passados entre idas e vindas no hospital. Desde o diagnóstico, o tumor tinha se espalhado por todo o corpo. Era muito agressivo, não teve como ser contido. Ela estava nos últimos dias, mas ele precisava ir lá contar para o amigo. Ela gostava muito dele, queria que ele soubesse e fosse visitá-la antes de partir. Não tivera como entrar em contato antes. Pediu desculpas. Sentou no mesmo banco de sempre, olhando para a portaria, como a esperar que ela entrasse a qualquer momento. Aquele dia, a cerveja foi cortesia da casa.

Pediu para Tião não contar para mais ninguém. Não que eles tivessem muitos outros amigos ali, mas queriam manter a discrição. Quando o inevitável aconteceu, o garçom pediu licença para ir ao enterro. Não disse de quem era, respeitando o último pedido. O amigo ficou mais algumas semanas sem aparecer e as pessoas, aos poucos, se esqueceram dele e da esposa. Por isso, quando ele sentou de novo naquele banco, Tião sabia bem o que fazer. O mesmo bar. A mesma cerveja. A mesma porção de fígado com jiló. E continuou fazendo isso em um silêncio mútuo pelos últimos nove anos.

“Traz a conta pra mim, Tião.”

“Tá na mão, patrão. Até semana que vem.”

“Até semana que vem.”

Para ler ouvindo: Lauana Prado – Me Leva Pra Casa / Escrito Nas Estrelas / Saudade

Esta crônica faz parte do Music Experience