Era o primeiro sábado do mês, dia em que fé e ciência coexistiam na Serra da Piedade. Religiosos faziam sua peregrinação morro acima para agradecer a Deus pelas graças obtidas. Amantes dos céus esperavam a abertura do Observatório Astronômico para observar as belezas da nossa galáxia. Em comum, só os agasalhos para combater o forte vento, o frio e a chuva fina que caía.
No meio de figuras tão peculiares, um homem sentado na pedra mais alta da Serra chamava a atenção de todos. Ninguém sabia como ele havia chegado até lá e nem como conseguia ficar tão estático. Usava apenas um short, uma camiseta e um par de tênis. Não se importava com as condições do tempo ou com as pessoas ao redor. Olhos fechados, absorto em seu próprio mundo.
Aos poucos, uma pequena aglomeração se formou. Todos observavam a curiosa figura imóvel. “Deve ser um fiel de Nossa Senhora da Piedade pagando penitência!”, apressou-se uma velhinha que usava um pesado casaco de lã tricotado por ela mesma. “Ou está agradecendo por alguma coisa. Aqui em cima é o lugar mais próximo de Deus que vamos chegar antes de morrer”.
Várias cabeças concordaram em respeito. Uma igreja construída em um lugar tão alto e quase inacessível era uma prova extrema de fé. Só a sensação de estar ali já era revigorante. Entrar nela e fazer uma oração tinha um significado diferente, como se os fiéis estivessem conversando ao pé do ouvido de Deus.
“Claro que não”, disse um jovem de óculos a dois metros da velhinha. “Aposto que ele levou um pé na bunda e queria espairecer um pouco. Ficar longe de tudo e todos, pensar na vida. Acordou hoje de manhã, olhou para o lugar que ela costumava ocupar na cama e decidiu fazer algo para aliviar a tristeza.”
“Ou vai ver se cansou da vida na cidade, do emprego entediante e decidiu passar um tempo em contato com a natureza”, disse uma moça que parecia ser amiga do jovem de óculos. “Ele deve estar revendo todas as decisões erradas que tomou na vida e pensando o que poderia ter feito para ser mais feliz.”
“E quem disse que ele não está feliz?”, perguntou um senhor de meia idade do outro lado da aglomeração. “Ele pode ter subido naquela pedra só para se sentir livre, extravasar a felicidade entrando em contato consigo mesmo. Estão vendo o sorriso no canto da boa dele? É felicidade, tenho certeza.”
“E se não for?”, desafiou um rapaz cheio de espinhas no rosto. “E se ele estiver se sentindo a pior pessoa do mundo e decidiu subir na pedra para se matar? Não ficaria surpreso se ele pulasse dali de cima, de cabeça. Ou se tirasse uma arma daquele short e desse um tiro na própria cara.”
Todos levantaram a cabeça na mesma hora, preocupados com uma possível tentativa de suicídio. Aquele rapazinho podia ter razão, ninguém podia prever o que se passava na cabeça do sujeito na pedra. Mas o senhor também podia estar certo e tudo aquilo ser só felicidade. Ou ele podia estar sofrendo, como o jovem de óculos previu. Ou só estar agradecendo as graças alcançadas.
Foi quando o homem abriu os olhos e se levantou devagar. Estralou as costas, mãos, pés. Olhou para o brilho da chuva nas montanhas ao redor e sussurrou: “Agora consigo ver tudo. Obrigado”. E desceu sem dar atenção a ninguém. Pegou a estrada rumo ao pé da Serra e nunca mais foi visto.
Para ler ouvindo: Manhãs azuis – Rafael Fontana
Esta crônica faz parte do Music Experience
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.