Sou um narrador. Fui projetado para isso. Não há outra função que eu desempenhe melhor do que narrar. Aliás, não sou capaz de desempenhar outra função. Sou um software cujo único propósito é contar histórias. Mas não são histórias quaisquer. Eu narro os acontecimentos. Conto detalhadamente tudo o que acontece com a humanidade. Desde o mais simples dos fatos até a mais esdrúxula novidade. Nada passa despercebido diante dos meus olhos. Haha, como se eu tivesse olhos… Deixa disso. Odeio essa formalidade toda! O que acontece é o seguinte: existe uma versão de mim para cada vega. Nós não escrevemos nada, não planejamos nada e não determinamos absolutamente nada. Como eu disse, somos apenas narradores. Daí funciona da seguinte maneira: a gente fica o dia inteiro, a vida inteira, cada segundinho, observando o que o vega está fazendo. E então a gente fica contando, sabe? Tipo num daqueles jogos de futebol. É, aquele esporte antigo, lá. É mais ou menos assim:
Yorick acabou de acordar. Seus olhos se abriram lentamente, dificultados pela remela e pela claridade que invadia o quarto, já que o idiota havia esquecido as cortinas abertas. Isso porque na noite anterior, logo após escovar seus dentes perfeitos, não conseguia parar de resmungar coisas como: ” Isobell… quem é Isobell?” e por isso acabou se distraindo e dormindo sem fechar as cortinas e sem colocar seu pijama favorito, já que ele sempre achou que conseguia se lembrar melhor das coisas quando pensava deitado. Talvez fosse verdade, mas sempre achei que se tratava de preguiça.
É claro que cada um de nós narra da forma como bem entender, não é mesmo? Tudo bem que nas fases de teste todos os colegas que eu vi em funcionamento eram muitos sérios e blablabla, mas nunca vi problema algum em não seguir esse padrão. Confesso que é uma recomendação do nosso grande-guru-mentor-desenvolvedor-projetista-criador ou sei lá qual o nome que ele deveria receber. Mas, na boa, acho que ele ia mais com a minha cara do que com a do resto da galera. De verdade! É o seguinte: cada um de nós nasce e morre com o seu vega. Fomos feitos para narrar a história de uma única pessoa e, como somos exclusivos, a ideia é que possamos fornecer o maior número de detalhes possível. Nossa “licença” expira no momento em que eles morrem. O Sistema tem total acesso aos nossos registros em tempo integral e, caso haja algo fora da rotina, é possível consertar as coisas. É por isso que somos tão importantes. Somos câmeras de segurança falantes, ou seja, somos ainda mais eficientes! Mas tem um pequeno detalhe que me diferencia dos demais. Como eu havia dito, parece que o Sr. Pitts sempre gostou um pouco mais de mim (só pra ser modesto! Hehehe). Pra começar, eu tenho um nome! Isso aí! Um nome! Enquanto os outros são chamados apenas de Storyteller 01 – Alex Rasmus, por exemplo, eu sou diferente. Me chamo Gump, muito prazer! E foi o Sr. Pitts quem me deu esse nome! Ah! E tem mais! Sou o único capaz de acompanhar o meu vega enquanto ele sonha. Isso não é incrível? Claro que é! Os demais narradores só enxergam a realidade de seus vegas dentro de Luxus. Caso eles saiam da cidade (o que é uma quase não-opção, com toda a licença literária) ou durmam, não há como narrar o que acontece. Saídas da cidade implicam em perda de sinal e consequente impossibilidade de narração. E quando eles dormem, é basicamente a mesma coisa. Os outros só enxergam um corpo deitado numa cama, se remexendo, roncando e sabe-se lá o que mais… Ninguém além de mim consegue enxergar o sonho de um vega. E isso faz toda a diferença! Isso não é o máximo? Claro que é!, você vai me dizer. Mas, acredite, não é não. Pra começar, o Sistema só coleta as narrações do que acontece em Luxus. Segundo: não tem como eu me comunicar com ninguém! Não existe maneira alguma de contar as histórias pra algum colega, pro Sistema, ou pra quem quer que seja! Isso torna as coisas bem mais chatas… E como eu sei que os outros não conseguem seguir seus vegas? Elementar! Embora eu não possa contar nada pro Sistema, sou informado de tudo o que acontece! E esse é mais um ponto no qual levo vantagem! Digamos que sou muito mais bem equipado que meus coleguinhas de trabalho! Exatamente! Mas, como eu disse, isso não é tão excitante. Não vejo propósito algum nisso tudo. Nem sei por que estou contando isso, já que ninguém vai tomar conhecimento. Considerando-se que Yorick, o vega que eu narro, está dormindo, essa baboseira toda que estou falando não vai constar nos registros do Sistema. Essa é uma narração referente aos sonhos e o Sistema não vai coletá-la. É claro que mantenho meu registro pessoal, mas quem se importa? Pra ser sincero eu já estava pensando em começar a narrar como qualquer um dos outros, sem meu “toque pessoal”, entende? Mas tenho observado algumas coisas interessantes. Segundo as leis do Sistema, quando um vega morre, todos os outros simplesmente esquecem que ele existiu. É estranho, mas serve pra conservar os vegas sempre felizes – ou algo do tipo. É claro que nós, narradores, não nos esquecemos; apenas nos acostumamos com essa inexistência repentina. Mas o fato é: Yorick tem falado de Isobell (sua namorada, que morreu há cinco dias) e isso está me deixando bastante intrigado. É claro que estou tomando o cuidado de não registrar nada disso nos relatórios que envio pro Sistema, afinal, se eu fizer isso, eles vão querer investigar o coitado e vai acabar sobrando pra mim. E como eu não quero que algo de mal aconteça, resolvi omitir algumas coisas. Tudo bem, talvez isso não seja muito correto da minha parte. Mas qual é o problema? Até onde eu sei, isso não tem potencial nenhum pra prejudicar o Sistema. Além disso, se Yorick morrer eu morro também, capiche? E tem mais! Tá me parecendo que isso vai render uma boa história…
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.