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Como não fui uma criança que assistia a muitos animes ou engolia volumes e mais volumes de mangás, não carreguei esse hábito para a vida adulta. Me lembro de acompanhar – e ler – um bocado de Dragon Ball, ver alguns episódios de Sakura Card Captors e tenho a vaga recordação de uma bola rosa com braços e rosto, que passava na Band Kids (pesquisei e descobri que o anime se chama Jibaku-kun). Embora muitos de meus amigos atuais sejam ligados a esse mundo e meu sobrinho esteja virando otaku, o máximo que me deixo envolver por essa área é com Pokémon. Mas quando decidi ir um pouco mais fundo, fui logo com o pé na porta e dei o play no já clássico Fullmetal Alchemist.
Apesar de parecer, esse não foi um passo no escuro. Meu amigo Rodrigo Basso passou anos insistindo para que eu assistisse, pois era é um dos animes favoritos dele. Posso ter demorado a aceitar a indicação, mas, depois de ver o primeiro episódio, maratonei os outros 63 da versão Brotherhood. Desde então, tenho enchido o saco do meu sobrinho para ele assistir também – coisa que ele ainda não fez, em reprimenda a eu não ter visto Attack on Titans. Mas ele me pediu para comprar os mangás. E, nisso, vi uma oportunidade incrível de começar nossa coleção.
Enquanto escrevo este post, a editora JBC ainda precisa lançar os três últimos volumes da série, com previsão de que estejam no mercado até setembro deste ano. Ou seja, tenho cerca de dois meses antes de ter o número 27 em mãos e, assim, encerrar a saga dos irmãos Elrich. E, contra minha vontade de ler compulsivamente, decidi ir com calma. Um por vez, parando para escrever aqui no blog o que achei da história de cada um. Coloquei para mim mesmo que só posso começar um novo quando escrever sobre o anterior. Então, vamos lá.
Não tenho pretenção de fazer uma crítica super embasada porque, como disse, é minha primeira incursão séria no mundo dos mangás. Além disso, não chegarei virgem à história. Sei o que acontece porque assisti ao anime, então tenho uma boa base sobre a trama. A descoberta será mais pela forma de contar, em um meio que não estou habituado. Por isso, tudo que eu disser neste e nos próximos posts são simples opiniões de um cara qualquer, baseadas nas vozes da minha cabeça e na minha experiência como leitor de modo geral.
Dito isso, vou fazer uma brevíssima contextualização sobre a história e passar para meus comentários sobre essa primeira edição.
Sobre o que fala Fullmetal Alchemist?
Escrito e ilustrado por Hiromu Arakawa entre julho de 2001 e junho de 2010, Fullmetal Alchemist é considerada a obra-prima da autora. Nela conhecemos a história dos irmãos Edward e Alphonse Elrich, dois talentosos alquimistas que têm o poder de moldar os metais a seu favor. Apesar de serem muito jovens, carregam o peso de terem ido longe demais em seus estudos e precisam lidar as consequências mal sucedidas de tentar trazer alguém de volta dos mortos.
Todo esse processo custou o corpo físico de Alphonse e uma das pernas de Edward – que também perde um dos braços ao tentar (e conseguir) prender a alma do irmão dentro de uma armadura. Quebrados física e psicologicamente, eles começam a treinar para se tornarem mais fortes na arte da alquimia e nas lutas corporais. Edward se qualifica como alquimista federal e os dois saem em busca da lendária pedra filosofal, que teria o poder de reestabelecer as perdas que tiveram na tentativa frustrada de ressuscitar a própria mãe.
Mas isso é apenas a superfície de Fullmetal Alchemist. Há toda uma trama política e militar explorada ao longo da história, que vai além dos irmãos Elrich. É um mundo rico de mitologias e ameaças, que vou falar com mais detalhes enquanto avançar nas análises do mangá.
Minhas observações – Volume 1
Poucas vezes vi uma primeira página tão impactante e intrigante quanto a de Fullmetal Alchemist. Para quem não sabe o que está por vir, ela deixa um grande mistério. Vemos Edward Elrich lamentando que algo aconteceu com o irmão, dizendo que as coisas não saíram como esperado. Há um close nos olhos desesperados, outro close nas mãos sobre um símbolo misterioso pintado no chão e, quando abre a imagem completa do personagem, ele está ajoelhado, em sofrimento, sem uma das pernas e sangrando. Ainda não é possível entender o que aconteceu, mas sabemos que tem algo muito errado. E, então, começa um excelente exemplo de “mostre, não conte” para apresentar os personagens principais.
Os quatro capítulos deste volume 1 cumprem esse papel com maestria, além de já começarem a expandir o universo em que se passa a história. Os dois primeiros (Os dois alquimistas e O preço da vida) formam um arco completo envolvendo o Profeta do Deus-Sol, no qual entendemos um pouco da personalidade e das motivações dos irmãos Elrich, além de sermos apresentados a alguns personagens que serão importantes no futuro.
Percebemos logo de cara que Edward tem problemas de autoestima ligados à altura, pois todos o subestimam por ser muito baixinho – todos acham que o verdadeiro alquimista federal é Alphonse, por estar em uma armadura de aço imponente e alta. Também é nesses capítulos que descobrimos que Al não possui um corpo físico, apenas uma existência presa à armadura, que Edward não precisa desenhar círculos de transmutação para usar seus poderes e que tem próteses de automail em um dos braços e uma das pernas.
Mas é a forma como isso é mostrado que deixa tudo incrível. No primeiro caso, o fator surpresa pega a gente de jeito, pois o personagem leva um tiro na cabeça e podemos ver o topo da armadura caindo, mas ele descendo a porrada com o restante do corpo. A transmutação sem a necessidade de desenhar o círculo é explicada no meio de uma batalha contra uma quimera, de forma natural. Já as próteses são vistas no momento em que o personagem se defende de um ataque, em que julgávamos que a situação estava perdida. Tudo orgânico, sem necessidade de muitas explicações textuais para entendermos o que está acontecendo e quais os limites.
Os dois capítulos seguintes (A vila da mina de carvão e A batalha no trem) são casos independentes, que mostram, principalmente, a índole de Edward frente ao poder que possui. Na história envolvendo os mineradores, vemos como as pessoas que estão no poder naquele mundo podem ser corruptas e como a imagem do exército e dos alquimistas federais é manchada frente à população. E cabe a Edward mostrar que um alquimista deve servir ao bem do povo (segundo o código de ética dos alquimistas) e desmontar o esquema de forma inventiva. No segundo, Edward e Alphonse ajudam a salvar um trem que estava sob ataque, mas o principal acontecimento deste segmento é sermos apresentados a uma das divisões do exército – que será importantíssima no futuro – e ao coronel Roy Mustang, também conhecido como o alquimista das chamas.
São quatro capítulos que estabelecem bem o tom da trama que teremos. Vamos acompanhar um protagonista poderoso, mas, muitas vezes, impulsivo e imaturo, que precisa se desenvolver bastante ao longo da jornada para conseguir lidar com as consequências do que está buscando. Alphonse, por outro lado, já perdeu tudo. Apesar de ser o mais novo e ainda se manter doce e inocente, por vezes assume o papel de ser o responsável – embora ainda precise ser cuidado pelo mais velho, que tem o fará o que for necessário para recuperar o corpo do irmão. Os dois possuem uma cumplicidade que pode ser sentida desde a primeira página, pois desde pequeno eles são todo o que o outro tem. Um cuidado que fica evidente quando é mostrada a história da fatídica transmutação, no segundo capítulo, e que vai ficando mais intenso com o desenrolar da história.
Algumas regras também já estão bem definidas desde esse início. A alquimia funciona de acordo com o princípio da troca equivalente, ou seja, “se quiser obter alguma coisa, então você sempre precisa pagar um preço à altura”. Isso é muito importante para o que vira daqui para frente e foi determinante para Edward e Alphonse não conseguirem trazer a mãe de volta do mundo dos mortos. O trecho em que Al conta que a transmutação deu errado e mãe não tinha forma humana quando “voltou” é de partir o coração – e ainda utiliza uma escala de cinza que ainda não tinha sido usada no mangá para dar mais gravidade para a situação.
Além disso, algumas questões são levantadas aqui que ajudam a gerar curiosidade para os próximos volumes. Pouco é dito sobre Gula e Luxúria, dois seres que se mostram extremamente poderosos ao subjulgar o Profeta do Deus-Sol, que possuem um símbolo misterioso tatuado. Isso também pode ser dito sobre o que é um alquimista federal, como é a hierarquia militar desse mundo e qual o papel dessas pessoas na ordem geral das coisas. Como sei que a trama se torna cada vez mais política e belicista nos próximos volumes, a expectativa para isso ser explorado em detalhes está alta.
Religião x Ciência
Uma importante discussão nos dois primeiros capítulos envolve a relação entre religiosidade e alquimia, que podemos extrapolar para a ciência. Esse é um ponto que ainda será retomado muitas vezes, mas, nesse primeiro momento, já nos evidencia que Edward é um sujeito prático, que não liga muito para esse tema, se portando como um cético por conhecer bastante sobre alquimia e o funcionamento da natureza. Esses debates são trazidos por Rose, uma moça que perdeu as pessoas que mais amava e acreditou que o Profeta do Deus-Sol os traria de volta da morte. São os garotos que mostram para ela o preço a ser pago por buscar a ressurreição e Alphonse é o principal responsável por levar a voz do juízo, dizendo que não existem milagres. Tudo tem um preço e, muitas vezes, simplesmente não vale a pena pagá-lo.
“Nosso objetivo é decifrar todos os princípios e leis que regem este universo, na nossa busca infinita pela verdade… não é irônico? A gente, que não acredita em deus, é quem age mais próximo ao território divino.“
Edward Elrich
A imagem abaixo retrata o exato momento em que Rose aceita toda a verdade, que não há salvação e que não pode se agarrar mais à uma figura messiânica qualquer, a um milagre que nunca virá. É uma imagem forte, seguida por outra mais impactante ainda, quando Edward fala para ela pensar sozinha no que precisa ser feito, mas que é preciso levantar e seguir adiante. Isso culmina com ela, em prantos, olhando desesperada para cima. Esse trecho específico me pegou de tal forma porque é muito como enxergo a adoração a figuras religiosas e à própria religião em si. É uma tábua de salvação, que adquire um significado não por um poder divino e místico, mas pelo valor que as pessoas dão para ela. É algo do próprio ser humano, uma simples construção para aguentar esse negócio que se chama vida. Mas as questões envolvendo a fé retornarão em outros momentos dessa história e podemos conversar melhor sobre essa relação no futuro.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.