Com pequenos spoilers, inclusive do final
Sob a redoma
Stephen King
Publicado em 2009
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Sob a Redoma, também chamado de “Como viver em um aquário cheio de peixes beta”.
Antes de falar sobre as características do livro, vamos para a sinopse. Sob a redoma conta a história da cidade de Chester’s Mill e o que acontece com ela quando uma redoma feita de um material desconhecido e indestrutível a isola do resto do mundo.
Simples assim. Uma redoma surgiu do nada e prendeu todo mundo dentro de Chester’s Mill, que é apenas uma cidadezinha do interior, com todas as características que uma cidadezinha do interior possui. As pessoas por lá se conhecem minimamente e possuem relações – boas ou não – entre si. Há muitos segredos guardados, muito medo do julgamento alheio e uma preocupação grande com a reputação. Isso sem falar da disputa pelo poder, que é intensa.
Por se tratar de uma cidade inteira sendo isolada, o livro conta com muitos personagens. Mas o King faz algo que é muito importante em livros deste estilo que é apresentar cada um deles aos poucos. Nas primeiras páginas até há uma lista dos principais personagens e qual a profissão deles na cidade, mas eu precisei consultá-la pouquíssimas vezes durante a leitura.
E a forma com que o King faz para apresentar esses personagens é contar a mesma história por diferentes pontos de vista. Não que ele repita a história, mas ele conta tudo através de pequenos fragmentos. Dificilmente tudo será contada apenas pelo ponto de vista de um único personagem e isso adiciona muito tanto narrativamente quanto no desenvolvimento dos vários envolvidos.
Por causa dessa característica não há um protagonista de fato. Há alguns personagens que se destacam em meio ao caos que surge, mas todos têm sua importância na trama geral. Como destaque há Dale “Barbie” Barbara, um ex-militar que é o atual cozinheiro do Rosa Mosqueta; a jornalista atrevida Julia Shumway; o auxiliar médico Rusty Everett e sua esposa policial Linda Everett, um grande contingente de outros policiais e o antagonista do livro, que é “Big” Jim Remmie e que merece um parágrafo exclusivo mais à frente.
A cena que achei mais bonita do livro inteiro, inclusive, vem de um personagem que aparece poucas vezes na história, que é o garoto Ollie. Por causa da redoma ele viu o irmão, a mãe e o pai morrerem. Ele se vê sozinho na fazenda da família e, nesse cenário desolador, ele se encaminha em direção à redoma. Lá ele começa a atirar pedras, causando a irritação do soldado que estava de guarda do outro lado. Quando questionado, o menino responde que está atirando pedras porque uma hora aquela redoma precisa ir embora e ele quer ser o primeiro a saber, já que ele não tem mais nada na vida e quer ir embora o mais rápido possível. E essa relação entre o menino e o soldado é importante mais à frente no livro, em outra bela cena.
Vocês perceberam que eu só falei sobra a ação dos personagens até agora. Isso porque ao contrário de O Iluminado, A Coisa ou Saco de Ossos, em que o hotel/cidade/casa tem participação efetiva na história, dessa vez Chester’s Mill é só o espaço em que eles estão. Tudo que acontece é por culpa única e exclusiva das pessoas que moram por lá. Claro que a redoma dificulta as coisas, mas eles teriam se saído bem melhor se os piores instintos de cada um não tivessem aflorado naquela situação.
É aqui que entra o Big Jim, o segundo vereador da cidade e um dos personagens mais detestáveis com que time o desprazer de me encontrar. Quem me conhece sabe o quanto eu odeio a Gwenhwyfar, de As brumas de Avalon (também conhecida como Guinevere, Genebra ou Esposa-Filha-Da-Puta-Do-Rei-Artur). É um ódio mortal, de querer vê-la pegando fogo enquanto eu rio do espetáculo. O Big Jim entrou para a mesma categoria e eu explico o porquê.
Tudo de ruim que acontece na cidade é culpa dele. Sedento pelo poder, ele vê na chegada da redoma a oportunidade de controlar a cidade inteira e, para atingir esse objetivo, começa a tomar diversas atitudes questionáveis, não se importando em derrubar quem estiver em seu caminho. Muito de sua motivação é religiosa e ele acredita que tudo que fez é para o bem da cidade, mas, no fim, todas as suas atitudes são puramente egoístas. E como ele é o grande comandante da cidade, as pessoas começam a seguir suas ordens fielmente, sem nem questionar o absurdo de muitas delas. Ele é um personagem que consegue ser detestável desde a primeira aparição até as últimas páginas.
Já que eu falei que acontecem coisas ruins na cidade, é bom mostrar que todas elas possuem consequências, tanto para o meio ambiente dentro da redoma quanto para as relações humanas lá dentro. Primeiro falando da redoma, é legal ver o cuidado de pesquisa que o King teve para descrever os efeitos lá dentro. A medida que o tempo passa, a redoma vai se sujando com a poluição e adquire diferentes camadas. O primeiro impacto visível da alteração do meio ambiente é quando o sol se põe de forma diferente graças aos efeitos ópticos gerados pela sujeira da redoma, culminando com uma chuva de meteoros cor de rosa e uma lua da mesma tonalidade. Além do pequeno efeito estufa que acontece lá dentro.
Essa foi uma das dificuldades do King ao escrever a história, pois ele queria retratar essas mudanças da forma mais fiel à realidade possível. Em uma entrevista, o próprio autor disse que a redoma é uma alegoria para o planeta Terra, já que “todos nós vivemos sob a redoma”. Tudo que os personagens fazem e consomem lá dentro influencia diretamente no clima e nos animais do local. Isso é bem semelhante à nossa relação com a Terra e, ao fim, ficamos com aquela lição básica de que se quisermos estragar tudo, seremos levados embora junto com o lugar que estragamos. Por isso a preocupação que os detalhes sejam fieis à realidade.
Agora com relação aos personagens, é legal notar como o King vai construindo as relações deles aos poucos. Ninguém é completamente bom ou completamente mal e todos têm alguma motivação por traz de cada uma de suas ações. O ápice dessa construção é quando eles percebem que a cidade está se dividindo em dois lados: os que apoiam Big Jim e os que estão do lado de Dale Barbara. Os próprios personagens começam a se organizar em torno disso e é então que a história engrena de fato.
E me disseram: “Não se apegue a nenhum personagem”. Não acreditei e vi muita gente que eu gostava morrendo. O King não poupa detalhes dessas mortes, com pedaços de cérebro voando para todos os lados e partes do corpo explodindo. Isso sem falar que ele costuma apresentar personagens desconhecidos e matá-los, só para mostrar o quão desesperadora está a situação embaixo da redoma. Ele é seco nas mortes e há pouco espaço para o luto, mesmo que alguns personagens sofram bem mais do que outros.
Nisso não podemos culpá-lo, já que a ação do livro é acelerada. Tudo acontece no intervalo de apenas uma semana, mas como a história é narrada pelo ponto de vista de vário personagens, parece que é muito mais tempo. Como conta o King na Nota do Autor ao final do livro, essa era mesmo a intenção, de manter o pé no acelerador o tempo inteiro. Esse é o fator mais importante para que a leitura não se torne cansativa em momento algum, mesmo com as mais de 900 páginas. Sempre há algo acontecendo e, quando não há, o King utiliza um recurso que ele é mestre de usar, que são os spoilers sobre o futuro. Não é raro o narrador interromper uma ação para informar, por exemplo, que em breve tal personagem estará morto e nunca mais voltará para casa.
E quando chegamos ao final, já aconteceu tanta merda que o clima de desesperança atinge níveis absurdos. As últimas 50 páginas são sufocantes [/trocadilho intencional] e King consegue passar isso muito bem através do desespero dos personagens, tanto os dentro da redoma quanto os de fora dela. As mortes são secas, diretas. São personagens que lutaram o livro inteiro e agora morrem porque o ambiente está tão inóspito que elas não conseguem mais respirar. É de fazer qualquer um perder as esperanças.
Para o fim, resta apenas o grande mistério de o que raios é a redoma. E querem saber a verdade? A resposta não tem muita importância. Não era essa a história que o King queria contar e nem me importei muito com o final rápido e superficial que o autor impôs. Em nenhum momento o problema maior foi a redoma, mas sim as pessoas que estavam lá dentro. Por isso ela recebe o tratamento que merece: o de um mero coadjuvante.
Sob a redoma é o King em sua melhor forma, escrevendo sobre personagens e desenvolvendo o espectro que existe entre o bem e o mal presente na natureza humana. É ele mostrando que todo o problema, no fundo, é causado apenas pelos homens. São eles, gananciosos e egoístas, que fodem tudo ao seu redor e tornam qualquer situação insustentável. E são esses detalhes construídos pouco a pouco que tornam o livro tão sensacional.
Longos dias e belas noites, sai King. Você conseguiu de novo.
Sob a redoma (Under the dome)
Stephen King
Suma de Letras, 2012 (originalmente em 2009)
954 páginas
Tradução: Maria Beatriz de Medina
P.S.: Fiquei com dó da marmota, que não teve nada a ver com o assunto e morreu.
P.S. 2: Não sei se vou assistir à série, lançada em 2013 pela CBS. Já falaram que ela muda muita coisa do livro e, me conhecendo como eu me conheço, tenho certeza que vou começar a confundir os dois quando começar a assistir. Prefiro manter as lembranças do livro.
P.S. 3: Antes que comparem com o filme dos Simpsons, a ideia para Sob a redoma é de 1976, quando o King tentou escrever um livro homônimo a esse. Três anos depois ele tentou retomar a ideia com o título de Os canibais, mas não levou para frente. Os Simpsons só foi ao ar em 1989 e o filme é de 2007.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.