O garoto no convés
John Boyne
Publicado em 2008
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Sei que já falei antes, mas tenho que reforçar aqui: sou putinha do John Boyne. É o oitavo livro dele que leio e cada vez tenho mais certeza de que quero acompanhar tudo que ele lançar. Então embarca comigo porque hoje a gente vai conversar sobre O garoto no convés, sexto livro do autor e o segundo a ser lançado aqui no Brasil.
Antes de começar a falar do livro, preciso traçar um pequeno contexto histórico. Dentre os casos de insubordinação marítimas, um das mais famosos é o do HMS Bounty. Em dezembro de 1787, o navio comandado por William Bligh partiu da Inglaterra rumo ao Taiti. Sua missão era produzir mudas de fruta-pão e levá-las para a Jamaica, com o objetivo de baratear os custos da escravidão local. Um ano e meio depois, já com a embarcação cheia de plantas e na rota para retornar, um dos oficiais, Fletcher Christian, liderou um motim e tomou o barco para ele. O capitão e mais 17 homens leais foram deixados em alto mar, no meio do Oceano Pacífico e tendo pouca comida e pouco espaço para sobreviver. Contra todos os prognósticos, eles navegaram mais de 5,5 mil km em 48 dias, e chegaram ao Timor sãos e salvos, perdendo apenas um homem no caminho.
Já do lado dos amotinados, muitos deles voltaram para o Taiti para se aproveitar dos prazeres carnais e sem compromisso que eles encontraram na ilha. Outros, como Christian, voltaram para o Bounty e navegaram para um lugar que não podiam ser encontrados caso a marinha inglesa fosse procurá-los (o que aconteceu. Eles de fato não foram encontrados). O barco foi queimado e, ao que tudo indica, eles ficaram na ilha de Pitcairn, no Pacífico Sul. Os motivos para a insubordinação foram vários, mas o mais difundido é a mão de ferro do capitão e a grande liberdade que os marinheiros tiveram no Taiti, principalmente com as moças locais.
Agora voltemos para o livro do John Boyne. O garoto no convés reconta essa história do motim do Bounty sob o ponto de vista de um personagem ficcional, chamado John Jacob Turnstile. O garoto de 14 anos embarca no navio no posto de ajudante do capitão, a posição mais baixa dentre todas as outras. Lá ele aprende a viver em alto mar e descobre melhor a personalidade de William Bligh, que aqui não é retratado como alguém que gosta de punir seus comandados, muito pelo contrário. A figura apresentada no livro é benevolente, mesmo nos casos que explodiu de ódio e nas atitudes contestáveis aos olhos dos marujos.
Mas para destrinchar melhor do livro, preciso falar sobre John Jacob Turnstile (ou Tutu, como ele é chamado no Bounty). No começo da história, acompanhamos o garoto nas ruas de Portsmouth, atuando como um ladrão. Ele é órfão e mora com o Sr. Lewis, um homem que o tirou da rua quando era bem pequeno e agora o explorava de diversas formas em troca da comida e do lugar que fornecia para o menino morar. No início sabemos apenas que esse Sr. Lewis obrigava John Jacob a fazer coisas que ele preferia nem entrar em detalhes, mas depois descobrimos que a casa onde o menino morava era também uma casa de favores sexuais, onde os homens da cidade iam para se aproveitar dos meninos que lá moravam. Isso é algo muito importante na personalidade de Turnstile e no modo como ele se comporta com as outras pessoas, inclusive nas vezes que ele falha ao tentar transar com sua namoradinha no Taiti, Kaikala.
O livro é escrito em primeira pessoa e isso implica uma série de escolhas narrativas. A começar pelos marujos, que são pouco desenvolvidos durante a história. Apesar de considerar isso um problema, já que a todo momento o Boyne fala sobre eles e sobre o que fizeram, isso é explicado pelo próprio trabalho do John Jacob, que o exilava do convés e o mantinha longe destes homens. Como ele pouco sabe sobre essas pessoas, nós também sabemos pouco sobre elas.
Outro ponto interessante é que Turnstile é um moleque muito insolente e isso reflete na forma como o livro é narrado. Os diálogos que ele participa (ou que imagina) são afiados e cheios de pequenas alfinetadas, sem se importar se o alvo é um policia, um marujo ou o capitão do Bounty. Essa insolência é vista, também, quando o menino critica, mesmo que de forma leve, o sistema de escravidão das colônias inglesas e o eurocentrismo. Isso o deixa várias vezes em problema e parte do seu crescimento ao longo da história é mostrado na forma como ele começa a controlar seu tom.
Além disso, por ser narrado no futuro, temos pequenos vislumbres daquilo que ainda acontecerá. O próprio personagem conta, por exemplo, que determinado trecho da viagem será mais tenso do que o atual e ficamos na expectativa desse trecho chegar logo. Porém, um ponto negativo é que em momento algum tememos pela vida do John Jacob, pois sabemos que ele está escrevendo a própria história e não pode ter morrido no meio do caminho, o que tira um pouco da emoção de boa parte das cenas de ação.
Mas é por causa dessa narração em primeira pessoa e, principalmente, pelo personagem de John Jacob Turnstile, que o livro ganha força. Como ele é um marinheiro de primeira viagem, acabamos por aprender junto com ele muitas coisas sobre navegação. E é por causa de Turnstile que temos a grande diferença do livro para sua versão histórica, que são as figuras do capitão Bligh e do imediato Christian.
Na obra do Boyne, o capitão é apresentado como uma boa figura, que evitou punições durante a viagem de ida e que se perdeu um pouco durante a estadia no Taiti, com atitudes controversas. A diferença é que, aos olhos de Turnstile, Bligh nunca deixou de ser uma boa pessoa e é só graças a ele que todos chegam vivos ao Timor, após o motim. Porém o menino também deixa margem para uma outra interpretação, já que podemos avaliar as atitudes dele que culminaram no levante e, também, analisar se a posição dele ao perder o barco foi a mais acertada. Bligh não é um anjo, mas também não é o vilão que muitas histórias pintam. Há uma parte, aliás, que o capitão toma uma atitude e pergunta para o garoto se ele havia feito o correto, mostrando toda a insegurança e a complexidade do personagem.
Já Christian não é mostrado como o herói que salvou os tripulantes da tirania do capitão Bligh. Turnstile o vê como um engomadinho chato, mais preocupado com se manter limpo e bonito do que com a missão da viagem. Não são raros os momentos de puro veneno com que o menino se refere ao imediato do Bounty, não se sentindo nem um pouco bem na presença dele.
E o final me lembrou muito o final de outro livo do John Boyne, que é O pacifista. Nos dois há uma extensão da história e os personagens, já mais velhos, buscam a redenção de seus atos e uma motivação a mais através de uma figura do passado que reaparece misteriosamente.
Apesar de todos os pontos positivos que elenquei até agora, o livro não é redondinho. Ao contrários dos outros livros do Boyne, onde tudo que era apresentado na história tinha um motivo de existir, nesse há várias barrigas, momentos que, se não existissem, não fariam diferença para o desenvolvimento da história central. Apesar disso, temos que levar em conta que este é um típico livro de aventura marítima e, como tal, é feito do encadeamento de pequenas aventuras. É por causa desse desenvolvimento às vezes lento que, quando Turnstile avista o Taiti pela primeira vez, abrimos um sorriso junto com ele. E sentimos cada um dos extenuantes 48 dias que os marinheiros passaram dentro da balsa, com fome e sede. Mas é o que o próprio John Jacob fala em uma determinada parte do livro, que a vida no mar é muito monótona e são os pequenos acontecimentos que os tiram da rotina e fazem a viagem ser lembrada.
Não achei este o melhor livro do Boyne que li, já que ele me tocou menos do que os outros. Porém é uma história bem desenvolvida, com elementos narrativos interessantes e com um personagem principal cativante. E é do Boyne, só isso já vale muito.
O garoto no convés (Mutiny on the Bounty)
John Boyne
Companhia das Letras, 2009 (originalmente em 2008)
493 páginas
Tradução: Luiz A. de Araújo
P.S.: Existem três adaptações do motim do Bounty para o cinema. A primeira foi feita em 1935 e tinha os grandes Clark Gable e Charles Laughton nos papeis de Christian e Bligh, respectivamente. O filme foi indicado a 8 categorias no Oscar, levando a estatueta de Melhor Filme. A segunda adaptação é de 1962 e traz Marlon Brando, Richard Harris e Trevor Howard no elenco, rendendo sete indicações ao Oscar. A adaptação mais recente é de 1984, com Anthony Hopkins e Mel Gibson nos papeis de Bligh e Christian.
P.S.2: Há um personagem que é essencial em O garoto no convés e que é o principal em O ladrão do tempo, primeiro livro do Boyne. Como ainda não li essa obra, não posso dizer se minhas suspeitas sobre Matthieu Zéla são reais, mas isso explicaria uma frase na parte final do livro: ” ‘Não posso acreditar’, disse, sacudindo a cabeça. “O tempo o tratou muito bem”, acrescentei, pois embora ele tivesse quase setenta parecia vinte anos mais moço.”.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.