Capa do livro O desatino da rapaziada. É uma capa cinza, com uma ilustração pequena da igreja da Pampulha.

O desatino da rapaziada

Humberto Werneck
Publicado em 1992
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O que Minas Gerais tem para produzir tantos bons escritores? Seria a cerveja dos botecos? O clima interiorano da capital, aliado à falta do que fazer? Os ares das montanhas que curam tuberculose? Essa é uma dúvida que muitos já tentaram responder, mas ninguém conseguiu. Talvez porque seja impossível.

Para se ter uma ideia, entre os escritores mineiros nativos e os de coração estão nomes como Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Rubem Braga, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Affonso Romano de Sant’Anna, Roberto Drummond, entre tantos outros. E todos eles tinham pelo menos uma coisa em comum: em algum momento da vida, trabalharam em jornais mineiros.

O desatino da rapaziada conta a história desses escritores e a sua relação com a mídia. Tudo começa em 1921, quando Belo Horizonte ainda era uma jovem capital de 23 anos. E começa com ninguém menos do que um dos maiores escritores de todos os tempos: Carlos Drummond de Andrade. O livro termina na década de 1970, com o fim de um dos ciclos do Suplemento Literário, uma das mais importantes publicações de Minas.

O desatino faz uma linha do tempo com os grandes escritores que passaram pelas redações mineiras, mostra como os jornais se organizavam, as relações dos autores com a política, como e porque a grande maioria deles saiu de Minas e foi procurar uma vida melhor em São Paulo ou no Rio de Janeiro e, principalmente, como era a relação destes escritores uns com os outros.

E talvez isso o que mais chama a atenção na obra. Tudo graças à leveza da escrita do Humberto Werneck (jornalista e escritor mineiro), que transforma o livro em uma grande crônica histórica, causos passam na nossa frente e, quando percebemos, estamos imersos em histórias reais de personalidades que admiramos só pelo papel. Eles estão fundando revistas, entrando em redações, publicando livros, discutindo sobre os movimentos literários da época, subindo no Viaduto Santa Tereza. E nós temos o privilégio de acompanhar de um ponto de vista bem próximo, por alguém que viveu uma parte daquilo e reuniu vários relatos e ensaios antes de escrever.

Cabe aqui uma reflexão sobre como a época permitia que essas pessoas todas se conhecessem e, mais, que pudessem sentar à mesa de um bar para conversar sobre literatura e assuntos banais. O tamanho da cidade possibilitava isso, pois os principais pontos de entretenimento estavam localizados no Centro, separados por alguns minutos de caminhada. As redações dos jornais ficavam na mesma região, o que gerava uma troca grande de informações. Além disso, as gerações passadas serviam de inspiração para a seguinte, tendo em Carlos Drummond o símbolo de admiração máximo de todos os novos escritores mineiros.

Foto do Carlos Drummond de Andrade ainda novo

Apesar de se passar basicamente em Belo Horizonte, também são retratadas cidades do interior de Minas que se colocaram no mapa pela literatura. Cataguases teve a vanguardista revista Verde e Itanhandu trouxe a Electrica, que conseguiram sair dos limites de Minas e foram referência em todo o Brasil.

Revistas, aliás, que mostram como o cenário da época fervilhava de ideias. Centenas de jornais e revistas foram lançadas apenas no período de 50 anos coberto pelo livro. A grande maioria deles não sobrevivia às primeiras edições (em se tratando de revista) ou de alguns poucos anos (no caso de jornais), seja por falta de dinheiro ou por desavenças. Muita coisa desse tempo se perdeu, já que Belo Horizonte não possuía sequer editoras decentes. Mas muito foi preservado e pode ser visto em Desatino.

Mais do que uma leitura interessante, O desatino da rapaziada é a mostra de que jornalismo e literatura podem andar juntos. Apesar de ter o ar de uma grande crônica, com seus causos e leitura leve, o livro também é um excelente exercício de apuração. Leitura obrigatória para jornalistas e para os amantes das letras.

Foto dos quatro cavaleiros do apocalipse: Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos

Reflexões sobre os modelos de jornalismo

Vocês já devem saber, mas sou um jornalista quase formado. Ao mesmo tempo, também sou amante de literatura. Leio porque gosto (muito) e porque sei que isso vai ajudar a melhorar meus textos, tanto jornalísticos quando literários. E apesar de ter começado a escrever há pouco tempo, já percebo uma mudança constante naquilo que produzo graças ao que leio.

Fiz essa introdução para mostrar que sim, jornalismo e literatura devem andar de mãos dadas. O jornalismo nada mais é do que uma forma de contar histórias e, quanto maior o repertório de quem escreve, maior a chance de o texto ser bom. Na época retratada por O desatino da rapaziada, essa relação era muito mais próxima. O livro mostra que os jornais davam espaço para esses escritores. Havia cadernos literários, com produções próprias de ficção. Uma oportunidade para quem estava começando e para quem queria saber o que estava acontecendo na cena literária local e nacional.

Hoje essa ideia praticamente não existe. Faço parte de um site que fala sobre literatura e, quando começamos, analisamos o que havia no mercado, principalmente dos grandes portais. São pouquíssimos os que dedicam uma seção para literatura e menos ainda os que a analisam profundamente. E se esqueça de espaço para autores. No máximo há colunas semanais de figuras já conhecidas no cenário nacional.

Esse distanciamento entre as duas áreas se reflete na forma de produção e nos textos, tanto impressos quanto online. Como a cultura da internet é a do imediatismo, os textos precisam ser feitos “para ontem”. Sofri isso na prática, quando trabalhei em um grande portal. A vontade de ser o primeiro a oferecer um conteúdo é maior do que a vontade de oferecer um conteúdo melhor. O tempo para apuração é curtíssimo e o de redação menor ainda. E logo é necessário passar para a pauta seguinte, pois são várias a serem feitas no mesmo dia.

No livro já mostra que a situação dos jornalistas não era tão fácil, mas pelo menos eles tinham um pouco mais de tempo para estruturar as narrativas. Hoje, na maioria dos casos, nem isso há. Sou a favor de um mundo com mais literatura e menos deadline no pescoço a cada cinco minutos.

O desatino da rapaziada
Humberto Werneck
Companhia das Letras, 1998 (publicado originalmente em 1992)
206 páginas
ISBN: 85-7164-259-1