
Mrs. Dalloway
Virginia Woolf
Publicado em 1925
Compre aqui
Já deixo claro que não vou conseguir fazer uma crítica bem embasada de Mrs. Dalloway. Não sou versado em Virginia Woolf, não sou entendedor do Modernismo fora do Brasil e, por mais que pesquise, ainda vou ficar com a sensação de que este texto está incompleto. A minha missão aqui é impossível e sei disso, mas peço que me acompanhe nela.
Tudo porque, quando li a última frase do livro, a única certeza que tive é que precisava relê-lo. Não agora, mas daqui a alguns anos. E que quando terminar essa releitura, precisarei ler de novo. E de novo. E de novo. Esse foi o nível de encanto que Mrs. Dalloway provocou em mim e acho que nunca vou entendê-lo em toda sua complexidade.
“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”. É a partir desse belo início que somos inseridos no livro publicado pela britânica Virginia Woolf, em 1925, e que conta um dia na vida de Clarissa Dalloway, uma senhora da alta sociedade que será anfitriã de uma festa que vai acontecer naquela noite. Aliás, não acompanhamos apenas o dia de Clarissa, mas o de uma série de personagens que possuem histórias interligadas e que têm Londres como seu importante pano de fundo.
A ideia é muito parecida com a que James Joyce fez com Ulysses, que mostra o dia na vida Leopold Bloom, porém tudo leva a crer que o romance do irlandês não foi a grande inspiração para o livro de Virginia (embora ela o tenha lido antes de escrever Mrs. Dalloway). O artigo escrito por Alan Pauls, que se encontra ao fim da edição da Cosac, conta que a ideia de Virgina veio antes, a partir de um pequeno conto escrito pela autora, chamado Mrs. Dalloway em Bond Street.
Mas falando sobre a leitura em si, a primeira coisa que preciso comentar é que o livro me causou uma estranheza inicial. A forma como Virginia encadeia as palavras e ideias não é tradicional e as informações são oferecidas para a gente aos pouquinhos. Desde a primeira página já entramos em uma vida que não sabemos nada sobre, sem possibilidade de encaixarmos as informações em algum lugar, pois ainda não temos referência para isso. Mas apesar do estranhamento, a forma de escrita contribui para que continuemos, já que podemos observar que estamos lidando diretamente com uma escrita baseada em fluxo de pensamentos.
Essa talvez seja a grande característica de Mrs. Dalloway e que o deixa tão especial. Não há capítulos. Tudo coabita em um grande bloco de texto sem divisões e cabe à gente se acostumar com as mudanças de focos narrativos. Quando você percebe que o livro funciona através dessas pequenas histórias, às vezes desconexas e às vezes ligadas à trama maior, a leitura flui.
Resumindo, isso significa que o livro funciona a partir de pequenas cenas. Em um momento estamos acompanhando Mrs. Dalloway comprar flores e, no seguinte, estamos acompanhando a reação das pessoas na rua à passagem de um suposto carro da realeza e, no momento seguinte, essas mesmas pessoas são entretidas com um espetáculo aéreo para, depois, voltarmos a Clarissa. Personagens surgem e desaparecem a todo instante, dando um bom exemplo de como a história vai seguir até o fim.
Porém, é por causa dessa característica flutuante que alguns personagens conseguem se destacar ao longo do dia de Mrs. Dalloway. O primeiro deles, e o que gera as maiores discussões ao longo da obra, é Septimus Warren Smith, um veterano da Primeira Guerra Mundial que sofre com os traumas pós-batalhas. Ele é, segundo alguns estudos acadêmicos, o ponto oposto da centrada Clarissa. Apesar dos dois nunca se encontrarem, as histórias dos dois têm muitos pontos em comum, que culminam com o suicídio dele e as reflexões da mulher durante sua festa, em um dos momentos mais bonitos do livro. A forma como o personagem é mostrado, aliás, é uma forte crítica a como os problemas psicológicos eram tratados na época. Isso sem contar que Septimus tinha características da própria Virginia, incluindo aí a tendência suicida.
Outro ponto muito interessante do livro são as pequenas reflexões psicológicas que ele provoca em seus personagens. Como em um dia normal, as pessoas refletem sobre suas ações, se julgam, voltam ao passado. Isso acontece muito na obra da Virginia, em especial com dois personagens. A primeira é a própria Mrs. Dalloway que, em outro momento inspiradíssimo do livro, conversa com Mr. Dalloway e conta aos leitores o porquê dela dar aquelas festas e qual ela achava que era sua função no mundo.
O segundo personagem é Peter Walsh, amigo de longa data dos Dalloway e que já foi apaixonado por Clarissa (e ela por ele). Retornando da Índia, ele precisa enfrentar novamente a mulher que amou, um casamento furado e seu atual amor por uma mulher casada. É com ele que passamos boa parte do livro e podemos entrar muito profundamente em seus pensamentos.
Além disso, não dá para eu encerrar este post sem falar de Londres. Da mesma forma que a Dublin de Joyce, Londres é parte integrante de Mrs. Dalloway. O livro é um retrato do início da década de 1920, tanto no comportamento das pessoas quanto nos cenários. Londres está por todos os lados, servindo como a muleta que guia os personagens a todo instante. Está nos lugares que eles caminham, reflete a personalidade de cada um deles e mostra lados que não esperaríamos encontrar. Se a ideia de realidade existe nesse livro, muito é por conta da cidade.
Todos esses pontos também são levantados por Alan Pauls no artigo que encerra a edição lançada pela Cosac Naify. Segundo ele, a recepção ao livro de Virginia foi bem morna, com varias críticas ao trabalho realizado. Mas ele mostra, também, que toda a estranheza do livro foi pensada pela autora, que decidiu dar uma resposta aos críticos de seu trabalho anterior e refinou ao máximo a linguagem e a forma de narrar, para chegar o mais próximo do que ela esperava atingir.
Até porque Mrs. Dalloway, no fim, é um livro praticamente sem história. É a forma como ele é conduzido que mais me agrada, com os diversos flashbacks e reflexões sobre a vida que provoca. A passagem de pontos de vista é sutil e bem executada, precisando o leitor ficar atento nessas mudanças e aproveitar ao máximo a experiência proporcionada. E a partir do próprio momento que nem a autora sabe caracterizar se seu livro é realmente um romance nos padrões já estabelecidos, quem sou eu para tentar encaixar ele em algum lugar.
Como a própria Virginia disse sobre Ulysses, livro que ela não gostou por achar muito pretensioso, “talvez a plena beleza de escrever nunca se revele aos contemporâneos”. Só tenho a agradecer por não ser contemporâneo a ela e poder apreciar, mesmo que não em sua totalidade, a beleza de Mrs. Dalloway.
Mrs. Dalloway
Virginia Woolf
Cosac Naify, 2013 (originalmente em 1925)
224 páginas
Tradução: Claudio Alves Marcondes
P.S.: O que falar dessa edição caprichadíssima da Cosac Naify? O padrão editorial continua lá no alto e é um prazer gastar meu dinheiro com esses livros. Só não gasto mais porque são meio caros. Cosac, me adota!
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.