A menina que não sabia ler

John Harding
Publicado em 2010
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Em um livro, o combo título+capa tem a função de atrair leitores e, ao mesmo tempo, dar um gostinho do que a história tem para oferecer. Isso é o básico. Por causa disso, peço para vocês esquecerem a capa nacional e o título dado na edição em português, pois eles destoam desse modelo que apresentei, em um péssimo sentido.

Você não vai encontrar a essência do livro em nenhum desses elementos, mas sim na frase que estampa o verso: “Na tradição de Henry James e Edgar Allan Poe, uma história incrível sobre uma menina e o poder de sua imaginação”. Deixa eu explicar o porquê.

A menina que não sabia ler é baseado no clássico livro de terror The turn of the screw (A volta do parafuso), do escritor norte-americano Henry James. Quando falo baseado, quer dizer que os dois têm muitos (mas muitos mesmo) elementos em comum. No livro de James, uma governanta vai para o interior da Inglaterra para cuidar de um casal de crianças. Chegando lá, ela passa a acreditar que os meninos estão possuídos por espíritos e começa a lutar contra isso. Porém, como bom representante do Movimento Neocrítico, a ambiguidade da obra está na veracidade ou não da história da governanta: será que tudo era fruto de sua imaginação ou ela realmente estava sendo atormentada por espíritos?

Já o livro de Harding conta a história de Florence, uma menina de 12 anos que aprende a ler sozinha, e de seu meio-irmão Giles, de oito anos, que abandona a escola para ser educado em casa. O tio (e tutor) de Florence a proíbe de ter uma educação formal, mas ela arruma um jeito de burlar a ordem e começa a ler e estudar sozinha. Quando Giles abandona a escola, uma preceptora é nomeada para cuidar do futuro acadêmico do menino, mas ela morre misteriosamente no lago, afogada. É quando chega a Srta Taylor, a segunda preceptora, que ativa o sensor aranha de Florence e faz com que a menina desconfie de que a mulher é um espírito que quer sequestrar o irmão.

Uma capa e um título bem mais adequados

Deu para perceber que, com algumas diferenças, as tramas dos dois livros são bem parecidas. Essa semelhança vai também para o nome dos personagens. No livro de James, as crianças se chamam Flora e Miles, bem semelhante a Florence e Giles, de A menina que não sabia ler. Até a propriedade onde os personagens moram possuem nomes parecidos: Bly, no original, e Blithe no livro de Harding. Além disso, nos dois livros há um tutor (tio) ausente, que não quer ter notícia dos sobrinhos e os isola em uma cidade do interior.

Mas todas essas informações pesquisei depois de ler A menina que não sabia ler, já que só conhecia a fama do livro de Henry James. Acredito que o livro de Harding tem um charme que com certeza o diferencia de A volta do parafuso: Florence.

Dividido em duas partes, o livro separa muito bem os pontos-chave das duas. A primeira funciona para que conheçamos melhor a protagonista. É nessa parte que descobrimos que Florence aprendeu a ler sozinha; que tem dificuldade em fazer amizades; que tem um “romance” com Theo, um asmático vizinho; e, principalmente, que ela é capaz de fazer qualquer coisa para proteger o irmão, já que os dois viveram sozinhos a vida inteira. Em resumo, somos apresentados a uma personagem feita para ser amada.

Na segunda parte são descritas as consequências da morte da primeira preceptora, culminando na chegada da Srta Taylor. É quando começa o suspense psicológico que envolve Florence e que a faz acreditar no possível sequestro do irmão. Tudo é envolto em um clima sobrenatural, com direito até a aparições de fantasmas no espelho, que desconstrói a personagem amada criada na primeira parte da obra.

Assim como A volta do parafuso, o grande destaque de A menina que não sabia ler é a ambiguidade. A começar pela narradora, que é a própria Florence. Como tudo é visto em primeira pessoa, a partir do ponto de vista da garota, fica impossível saber se tudo não passou de um devaneio ou se aconteceu de verdade. Se narradores em primeira pessoa não são confiáveis por natureza, ela é menos ainda.

Isso sem falar dos diversos pequenos mistérios que são lançados durante a leitura e que não são respondidos de propósito, para aumentar o clima de suspense. Nada é dito com relação ao tio/tutor, a história da morte da primeira preceptora não é contada realmente, o sonho recorrente de Florence não é desvendado, assim como as fotos que ela encontra. Harding utiliza esse recurso para manter o leitor completamente no escuro e deixar no ar a ambiguidade presente em todo o livro.

Além disso, o final do livro (e as consequências das ações de cada personagem) são bem típicos dos contos de Edgar Allan Poe. Não vou falar muito para não estragar surpresas, mas espere algo bem intenso e com requintes de crueldade.

A menina que não sabia ler (Florence and Giles, no original)
John Harding
Leya, 2010
282 páginas
Tradução: Elvira Serapicos

Sobre a versão em português

O título do livro em inglês é Florence and Giles, algo que faz muito sentido ao analisar a obra como um todo. Ao traduzi-lo para o português, claramente se basearam no best seller A menina que roubava livros, de Markus Zusak. Uma jogada de marketing para alavancar as vendas (e funcionou, já que o livro entrou nas listas dos mais vendidos do Brasil, mesmo que não tenha entrado lá fora), mas que é um desrespeito com o leitor.

Não são poucos os relatos de pessoas que compraram porque o título era parecido com o de Zusak ou porque a capa era bonita. Nenhum dos dois reflete o que o livro é, de fato. Ponto pra Leya, que vendeu bastante, mas com meios não tão legais.