A ilha do tesouro

Robert Louis Stevenson
Publicado em 1881/82
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Quando eu era criança, não houve uma febre de piratas. Meus únicos contatos com esse mundo de navios, tapa olhos e pernas de pau foram através do Peter Pan. Como sempre me identifiquei com o Peter, nunca gostei do Capitão Gancho e de sua tripulação. O resultado é que nunca sonhei em ser pirata.

Hoje as crianças têm Jake e os piratas da Terra do Nunca e, em certa escala, o Jack Sparrow. E, para falar a verdade, na minha época até teve Planeta do tesouro, mas nunca gostei dele. Esses exemplos mostram que as histórias de piratas sempre estiveram por aí. Fiquei pensando o motivo e a única explicação que encontrei é que elas têm tudo que uma boa aventura precisa. E todo mundo gosta de uma boa aventura. Mas se elas persistem no imaginário infantil até hoje, muito é culpa de A ilha do tesouro, escrito por Roberto Louis Stevensos entre 1881 e 1882.

A ilha do tesouro é um daqueles livros que você já sabe a história, mesmo que em seu inconsciente. A aventura do garoto que descobre um mapa do tesouro, parte em um navio pirata e vive diversas confusões no caminho até se tornar um heroi e achar o tesouro é de conhecimento geral. Isso só mostra a força que o livro de Stevenson tem até hoje. Ele traz consigo muitas adaptações para teatro, cinema, quadrinhos e televisão, que ajudaram a transformá-lo em um clássico da literatura infantil inglesa.

Movido por isso, resolvi comprar o livro quando o vi em um sebo. Fui ler e minha maior surpresa foi descobrir que era um livro simples, sem muitos rodeios. Ele vai direto ao assunto central e não desfoca em nenhum momento da aventura, que é o que realmente move a história. Os personagens não são tão bem desenvolvidos no caminho e a gente só descobre quem eles são através de suas ações. Não há uma reflexão ou pequenas sutilezas que nos revelem algo. A forma narrativa também é bem simples, contada em primeira pessoa pelo personagem principal, Jim Hawkins, através dos momentos-chave da viagem.

E sim, é uma puta aventura com tudo que é necessário para empolgar as pessoas. Mas terminei de ler e fiquei com uma dúvida na cabeça: Por que esse é um livro tão clássico? Comecei a procurar alguns artigos acadêmicos para entender isso e me deparei com uma pesquisa feita pela portuguesa Maria Laura Bettencourt Pires, professora catedrática de estudos ingleses e americanos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Muito do que vou falar a partir de agora mistura o estudo dela com as minhas impressões do livro e espero que, ao final da critica, vocês possam ficar tão fascinados quanto eu fiquei por essa obra.

Robert Louis Stevenson sempre disse que A Ilha do Tesouro era um livro para garotos. A história foi criada, aliás, para entreter o enteado Lloyde Osbourne, de onze anos (o tal S.L.O. para quem o livro é dedicado). Ela foi publicada em uma revista voltada para crianças chamada Young Folks, em formato de folhetim entre os anos de 1881 e 1882. Isso explica os capítulos serem mais curtos e a necessidade de um gancho no final de cada um deles, pois era necessário atrair a atenção do público e convencê-lo a comprar a revista seguinte.

É por ser uma obra voltada para o público infantil que A Ilha do Tesouro adquire uma importância gigantesca. Histórias de ilhas desertas já existiam (Robinson Crusoé, por exemplo, foi lançado 160 anos antes). Piratas também eram temas muito comuns (Edgar Allan Poe, por exemplo, lançou The Gold Bug 40 anos antes, contando sobre um tesouro enterrado). Porém não eram para o público infantil, que estava imerso naquilo que a autora do estudo coloca como “A era de ouro dos contos educacionais”.

Todas as histórias publicadas naquela época que fossem para crianças precisavam de ter uma clara lição de moral por trás. Elas eram uma ajuda para os pais na hora de educar os filhos e não havia praticamente nada que fugisse desse modelo. Até que vem A ilha do tesouro e quebra isso em pedacinhos.

A começar que o livro não tem lição de moral. Como disse, ele é uma aventura feita única e exclusivamente para divertir o leitor. Jim Hawkin é um adolescente inexperiente que perde o pai, descobre um mapa do tesouro e sai para uma aventura junto com uma tripulação formada por “pessoas de bem” e piratas já conhecidos.

É nesse ponto que o livro se destaca, pois não há o confronto tão claro entre o bem e o mal. Coloquei “pessoas de bem” entre aspas porque fica mais fácil me referir a elas assim, mas não é bem como funciona. Há muitas nuances nesse caminho que Stevenson trata muito bem.

Antes de continuar, quero propor uma coisa: pense em um pirata clássico e me diga as características dele. Possivelmente você pensou em alguém gordinho, de chapéu, tapa olho, perna de pau e com um papagaio no ombro. Tirando o tapa olho, essa é exatamente a figura de Long John Silver, o grande pirata da história. É ele que organiza o motim da tripulação contra as “pessoas de bem”. Ele seria, em uma história clássica, a personificação do mal. Mas em A Ilha do Tesouro ele não é.

Ao lado de Jim, o personagem mais bem construído do livro é Long John Silver. Ele apresenta sagacidade e capacidade de se adaptar às diversas situações que se apresentam. Tem lábia e sabe combater quando é necessário. O livro todo o mostra com uma personalidade ambígua. Nunca bom o suficiente, nunca mal o suficiente. Para uma época em que a literatura moral era a lei, isso foi uma baita ruptura.

Mesmo seguindo o padrão das histórias clássicas, que é o que Stevenson pretendia desde que começou a escrever A Ilha do Tesouro, com o bem vencendo no final e o ciclo do herói se completando com o retorno a salvo de Jim e dos “homens de bem” (mais ricos, lógico), o mal não perde completamente. Graças à postura de Long John, ficamos sem saber classificá-lo. E ele se dá bem no final, sai com uma parte do tesouro, escapa da forca e, aparentemente, volta para a esposa e vive feliz. Imagina como uma sociedade com literatura moralista viu essa situação?

Por causa disso tudo, e por ser um puta livro, A Ilha do Tesouro entra para o panteão dos grandes clássicos da literatura infantil. E se hoje algumas palavras soem ultrapassadas e dificultem um pouco a leitura, a aventura continua lá. O livro foi escrito para divertir as crianças. Só isso. Acho que ele cumpre muito bem essa função.

A ilha do tesouro (Treasure Island)
Robert Louis Stevenson
Círculo do Livro, 1973 (publicado originalmente em 1881/1882)
287 páginas
Tradução: Alsácia Fontes Machado

P.S.: Eu só dei uma pincelada no que a Maria Laura Bettencourt Pires e acrescentei algumas coisas que pesquisei/percebi sobre a obra. Vale muito a pena ler o trabalho completo dela, que tem muita coisa interessante.