eles eram muitos cavalos

Luiz Ruffato
Publicado em 2001
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Em maio de 2008, embarquei em um voo para São Paulo. Era a segunda vez que eu visitava a cidade, mas a primeira que faria isso de avião. Para quem não sabe, sou de Belo Horizonte, essa cidade grande com alma interiorana. Então vocês podem entender meu choque ao avistar a capital paulista do alto pela primeira vez. Enquanto o avião se aproximava do aeroporto, a cidade crescia em minha janela. Crescia e não tinha mais fim. Fiquei assustado e entendi, pela primeira vez na vida, o conceito de uma grande metrópole.

Essa sensação é muito importante para entender o livro do mineiro Luiz Ruffato, a começar pelo título. eles eram muitos cavalos é uma frase retirada do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. A epígrafe do livro ainda completa: “Eles eram muitos cavalos, / mas ninguém sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem…”

Na obra de Ruffato, esses cavalos representam as pessoas de São Paulo. Todos, sem julgamento de cor, sexo, situação financeira, origem, bairro. Em uma cidade tão grande, as identidades se perdem na vastidão. No fundo, eles eram muitos cavalos e suas vidas não eram menos ou mais importantes no meio de tantas outras. Ninguém se importava de fato com “seus nomes, sua pelagem, sua origem”.

Essa ideia é reforçada quando olhamos a estrutura do livro. São 70 pequenas histórias que relatam um dia na capital, mais especificamente o dia 9 de maio de 2000, uma terça-feira nas vésperas do Dia das Mães. Durante esse período de 24 horas, Ruffato brinca com a linguagem e com os estilos de escrita, utilizando-se de classificados de jornais, horóscopos, textos não lineares, palavras e construções frasais próprias da fala, pontuação (ou a falta dela), cartas, cardápios, diálogos e muito lirismo em várias passagens.

Como são histórias tão diferentes entre si, não há um fio condutor que as une e todos os personagens são independentes. Apesar de soar como um problema em uma primeira análise, isso funciona muito bem. É a síntese da pluralidade de uma cidade como São Paulo. Não há como retratar um dia, a partir do ponto de vista de tantas pessoas, e manter uma história linear. E nem essa é a intenção do livro.

No final, o que temos é um grande mosaico de São Paulo, com suas eternas diferenças escancaradas para os leitores. É um livro contemporâneo, tanto na forma de escrita quanto nos temas tratados. E mesmo se tratando de histórias tão individualizadas, são problemas do nosso tempo. Aliás, São Paulo acaba se tornando a grande protagonista do livro. Aqui abro um parênteses para fazer outra reflexão:

É muito difícil caracterizar esse livro como um romance ou um apanhado de contos e crônicas. Ele foge dos padrões já estabelecidos, então é melhor nem brincar de querer classificá-lo, pois é impossível.

São Paulo se torna a grande protagonista de um livro que não tem protagonista. As pessoas passam e as histórias continuam além das páginas. Não precisamos ler os desfechos para saber que elas continuarão. É só o recorte de um dia dentro de uma grande cidade. É muito pequeno dentro de um sistema muito complexo, mas, ao mesmo tempo, é tocante e faz uma forte crítica social.

Não é um livro fácil de ser lido, mas é recomendável lê-lo de uma só vez. Engolir São Paulo. Engolir essas pessoas e situações que passam em nossa frente. Se você não quiser ler em uma só sentada, abra em uma página qualquer e leia. A ordem dada não faz diferença para o resultado. E, ao final do livro, podemos fazer como o casal da última história e fechar os olhos para o que lemos/vimos/ouvimos. Ou sair e enfrentar a cidade.

eles eram muitos cavalos
Luiz Ruffato
Boitempo Editorial, 2001
150 páginas