A dança da morte
Stephen King
Publicado em 1978
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Já aviso com antecedência: a crítica vai ser enorme e cheia de spoilers.
Em 1978, a versão reduzida de A Dança da morte foi lançada. O motivo alegado para o corte foi o tamanho do manuscrito, que encareceria o produto final e impactaria as vendas. Não satisfeito, King esperou doze anos – e a consolidação da carreira de escritor – para lançar a versão estendida, com mais de 150.000 palavras (cerca de 500 páginas) a mais que o original.
A história começa em 1990 (no original era em 1980, mas a revisão trouxe para a nova data de lançamento), quando uma cepa de vírus, semelhante ao da gripe, é liberada por acidente em uma base secreta dos Estados Unidos. A taxa de mortalidade chega a 99% e o governo não consegue produzir uma vacina a tempo. Resta ao 1% da população sobrevivente descobrir como reerguer uma civilização em meio ao caos. No caminho da reconstrução, duas forças se apresentam e reúnem as pessoas a seu redor. Do lado oeste das Montanhas Rochosas, em Las Vegas, temos a força do mal, representada por Randall Flagg. No lado leste das Rochosas, na cidade de Boulder, temos Mãe Abigail, representante do bem.
Em um resumo bem simples, o livro é isso. A batalha das pessoas imunes ao vírus para sobreviver, lutando tanto contra o ambiente inóspito quanto contra as forças do mal. Mas, como qualquer livro do King, a história apocalíptica é só o pano de fundo para contar as histórias dos personagens e de como eles reagem naquela situação.
O livro é dividido em três partes. Na primeira (O Capitão Viajante) são descritas as consequências da liberação do vírus e o que os sobreviventes fizeram para retomar o que havia sobrado de suas vidas. A segunda parte (Na Fronteira) fala da viagem dos imunes até encontrar Mãe Abigail e de como eles reergueram a cidade de Boulder. Na terceira (O Confronto) temos a batalha entre as forças do bem e do mal e o resultado do conflito.
O capitão viajante
Já li muitos livros do King, mas nunca havia sentido tanto medo quanto senti em A dança da morte. Quando li O Saco de Ossos, passei muito tempo sem olhar para os imãs da minha geladeira (e até hoje tenho esse medo, admito). A Coisa acentuou meu pânico por palhaços. Mas, até então, todos eram temores de seres sobrenaturais, que meu lado racional sabe que não existem. Já neste livro o medo é de algo real.
O vírus, chamado de Capitão Viajante, é algo crível. É a representação daquele desespero que bate em todo mundo quando se ouvem notícias sobre pandemias ou vírus indestrutíveis. Tenho certeza que já passou por sua cabeça conspiratória que o governo pode ter uma cepa de vírus altamente mortal armazenada em laboratórios secretos. Basta um erro para que a população inteira seja contaminada. É disso que o livro fala.
O medo é acentuado pela forma como King narra a evolução da pandemia. Em vez de já começar em um cenário apocalíptico, ele apresenta os personagens principais antes do Capitão Viajante entrar em suas vidas. Conhecemos o que cada um era antes da catástrofe e, à medida que o vírus se espalha pelo território norte-americano, eles sofrem as consequências. São desesperadoras as passagens em que filhos precisam enterrar os pais e que as pessoas próximas a eles vão, lentamente, sucumbindo à doença. É também aterrorizador ver uma cidade como Nova York completamente vazia e deixada ao léu.
A vantagem desse início mais lento é que podemos entender a motivação de cada um dos personagens. É graças a esse início que compreendemos os laços que serão formados adiante. Sem falar que ele é extremamente angustiante, pois você se coloca na pele daquelas pessoas. A dor de cada uma delas é palpável. Uma cena particularmente emocionante é quando, na primeira reunião geral da cidade de Boulder, as pessoas choram ao cantarem o hino nacional. É como se elas percebessem pela primeira vez que o mundo que elas conheciam não existe mais.
O livro prossegue até o final da epidemia, quando ela já não afeta mais a população sobrevivente. A forma que King encontra para mostrar isso é através da personagem Fran Goldsmith, que se descobriu grávida pouco antes do início do desastre. Na época do nascimento do bebê, a batalha já havia sido travada em Las Vegas e tudo estava calmo, mas a população ainda estava apreensiva, pois ninguém sabia se os bebês contrairiam ou não o Capitão Viajante. É Fran que traz essa resposta, quando seu bebê (apesar de não ter nascido de dois pais imunes) sobrevive. E a cena final, dela com a criança no parque, é o símbolo de que, apesar do mundo estar em ruínas, ainda há esperança.
Os personagens
O livro tem muitos personagens, mas em nenhum momento isso soa confuso, graças à distribuição dos capítulos feita pelo King. Na primeira parte do livro, cada capítulo é dedicado a um dos sobreviventes principais e a como ele reagiu à pandemia. Ao contrário de O Justiceiro, onde ele apresenta milhões de personagens de uma única vez, em A dança da morte as coisas são feitas com a calma necessária para que nos lembremos deles no futuro e nos importemos com o seu destino.
Esse detalhe é importante porque, à medida que o livro avança, percebemos que nenhum personagem está a salvo. O cenário pós-apocalíptico é nervoso, com jogos de interesse e muita crueldade. Sabemos quais são as forças e fraquezas de cada um. A cena da morte de Nick Andros, por exemplo, é um exemplo disso. O rapaz surdo-mudo tem uma capacidade de raciocínio e uma premonição acima da média. Quando ele percebe que há uma bomba escondida no armário, corre para desarmá-la, mas não consegue. Nenhum dos outros personagens seria capaz de tal atitude. Foi uma fraqueza de Nick que o matou. No final, todos poderiam ter sobrevivido, só que é que a morte é imprevisível e não escolhe quem irá poupar. O livro retrata muito bem isso.
Além disso, ninguém é totalmente bom (nem mesmo Mãe Abigail) e nem totalmente mal (com exceção de Flagg, mas ele não é humano). Essa ambiguidade é que torna os personagens tão completos. O maior representante dessa categoria é Harold Lauder, um rapaz apaixonado por Fran Goldsmith que se desilude com a garota após ela se apaixonar por outro. Os conflitos internos do personagem são tão intensos que ele passa para o lado de Randall Flagg, se arrependendo depois.
Outro ponto importante para essa distinção do bem e do mal dentro dos personagens é quando Dayna Jurgens (que era uma espiã de Boulder) chega a Las Vegas e percebe que aquelas pessoas ali eram iguais à da cidade ao leste das Rochosas. A única diferença é que elas tinham medo de Flagg e faziam tudo que ele mandava sem questionar o porquê. Podiam ser pessoas boas, mas que estavam do lado errado por medo (Em tempo: não lembro se essa passagem é realmente da Dayna ou de quando Larry, Glen e Ralph chegam a Vegas, mas ela existe).
E para deixar a história mais verídica, King insere um dos capítulos mais legais do livro. Ele diz que a medida que a supergripe declinava, o mundo sofreu uma segunda epidemia. Embora sem nome, creio que Darwin ficaria feliz com a classificação de “Seleção Natural da Espécie”. Durante todo o capítulo, King descreve pequenas histórias de personagens que eram imunes à gripe mas que, por algum motivo, faleceram. Envenenamento, doença, assassinatos, incêndios. Como diria King, “nenhuma grande perda”.
Bem x Mal
Apesar de insistir que A Dança da Morte é um livro sobre pessoas, não posso deixar de lado todo o conflito entre o bem e o mal presente na história. Há um lado religioso forte, que influencia os personagens desde o início, dos mais céticos aos mais religiosos.
Antes de se encontrarem, todos têm sonhos tanto com mãe Abigail quanto com Randall Flagg. De acordo com o modo como reagem aos sonhos, eles se encaminham ou para leste ou para oeste. Mãe Abigail é a representação do bem, o equivalente a uma enviada de Deus para quem sobreviveu. O decepcionante, porém, é que o papel dela ao longo da história se resume a unir as pessoas em torno de um objetivo comum e mais nada.
Em determinado momento, ela chega até mesmo a questionar a fé e o próprio papel naquilo tudo. Acreditando que não é digna de ser uma enviada de Deus e estar gostando de toda atenção que recebe, ela some no deserto (tal qual Jesus). Quando retorna, já quase-morta, é apenas para dar uma missão para os líderes de Boulder. Nada mais.
Do outro lado, a presença do mal é muito mais imponente. Nada deixa claro se Randall Flagg é um enviado do demônio ou se é apenas uma representação do mal. Mas ele age movido pelo instinto da destruição, sempre se considerando superior e arquitetando seus planos nos mínimos detalhes, graças a seu dom da leitura do presente.
Isso reflete nas prioridades das duas cidades. Enquanto Boulder tenta reerguer os serviços básicos para restaurar uma sociedade, Las Vegas se arma para uma guerra. Essa diferença é fundamental para perceber essa dicotomia entre as duas facções presentes nos Estados Unidos.
A parte religiosa volta a aparecer no confronto final, que segue a cartilha King de ser rápido e meia-boca. Quando mãe Abigail volta, ela diz que os representantes de Boulder precisar ir para Vegas e parar Flagg, sem nenhuma arma ou veículo, em uma verdadeira provação para todos eles. Quando chega a hora do confronto em si, ele não acontece, ficando a cargo de Deus resolver toda a situação (“E a coisa no céu parecia uma mão”), terminando com o sacrifício de Larry e Ralph, além da morte de todos os que eram considerados maus (“E os justos e os ímpios igualmente foram consumidos naquele fogo sagrado”).
Para finalizar o livro, King ainda precisa de 55 páginas, estendendo a história do retorno de Stu Redman ao máximo e apenas pincelando sobre o futuro daquela nova sociedade. Ele poderia ter explorado o que aconteceu em Boulder após o seu comando ir embora, mas não. Focou apenas em Stu Redman e Tom Cullen. Durante esse período de provação (dessa vez para o leitor), duas passagens se destacam.
Uma delas é primeiro Natal após a supergripe. Stu e Tom estão sozinhos e ilhados por causa do gelo. Stu decide, então, trazer a magia do Natal para Tom e faz uma emocionante festinha a dois em meio a um cenário de completa destruição.
A outra passagem é a última página do livro, em uma conversa entre Fran Goldsmith e Stu Redman. Ele, cabisbaixo, refletia sobre o que o mundo havia se tornado. Quando ela pergunta em que ele estava pensando, ele pergunta: “Você acha… você acha que as pessoas chegarão a aprender alguma coisa?”. Ela responde: “Não sei”. E o livro se encerra da melhor maneira possível.
Ligação com a Torre Negra
Quem me conhece sabe que eu sou aficionado com a série Torre Negra. A Dança da Morte é um dos livros do King que mais faz referência à série, a começar pelo vilão Randall Flagg. É ele o tal Homem de Preto que fugia pelo deserto enquanto o pistoleiro ia atrás.
Nesse livro podemos conhecer um pouco sobre a verdadeira identidade dele, como age e o que ele representa para o mundo. Tudo bem que nada é explorado em detalhes e ele ainda é um vilão pouco aprofundado, mas é algo a incorporar ao universo da Torre. Isso sem falar no final do livro, que é uma referência clara ao mote de A Torre Negra e à ideia de que o Ka é uma roda e não podemos fugir dele.
Referências externas
Não podia deixar de comentar que a série Lost bebe muito de A Dança da Morte. A primeira referência é a forma de contar a história, baseando em personagens para tratar algo maior e se concentrando em um de cada vez. Outra referência bem clara, confirmada por Damon Lindelof – co-criador da série –, é a semelhança entre Charlie (Lost) e Larry (Dança da Morte). Os dois são rockstars e possuem problemas com drogas. Isso sem falar em diversos plots que foram usados em Lost que correspondem a passagens do livro (nitroglicerina, sonhos de Claire, sacrifício de Larry/Charlie).
Considerações finais
Depois de tudo que falei, não resta muito. Só posso dizer que esse foi um dos melhores livros do King que já li, tanto pela história quanto pelos personagens. Um aprofundamento em questões pessoais e também em questões relativas à vida em sociedade. Fantástico. Só isso.
A Dança da Morte
Stephen King
Editora Objetiva, 2005
940 páginas
Há alguns anos o meu Top 5 livros do King não mudava. Com a leitura de A Dança da Morte o ranking sofreu uma pequena mudança. Então vamos a ele:
Top 5 livros de Stephen King:
5) Love
4) A Dança da Morte
3) A Coisa
2) A Torre Negra (em especial o volume IV – Mago e vidro)
1) Quatro Estações
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.