Cale a boca, jornalista
Fernando Jorge
Publicado em 1987
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Segundo a Federação Nacional dos jornalistas, mais de 100 profissionais foram agredidos somente durante as manifestações de junho de 2013, seja por policiais ou por manifestantes. Durante os atos, eles foram impedidos de exercer sua profissão pelo simples fato de mostrarem o logo de uma determinada emissora. Isso porque estou falando de um mês, no Brasil. Os dados da Federação Internacional de Jornalistas mostram que 108 foram assassinados em 2013. Há poucas semanas, os EUA confirmaram que o vídeo de um jornalista sendo decapitado era real.
Nunca foi fácil ser jornalista, especialmente se você cobre política, casos policiais ou algum tipo de conflito. Para passar a melhor informação para o público, sua vida pode acabar entrando em terreno perigoso. E não é só isso. Às vezes basta que sua matéria desagrade alguém importante para que você sofra as mais severas consequências. É justamente sobre esses abusos que o livro Cale a boca, jornalista, do escritor e jornalista Fernando Jorge, fala.
Fazendo uma linha histórica desde os tempos da monarquia, Fernando Jorge conta histórias de jornalistas que sofreram algum tipo de abuso por conta de matérias publicadas em seus jornais ou apenas por causa de suas posições políticas. São muitos os casos que desfilam pelas páginas e não vou me concentrar em nenhum específico, mas eles mostram desde agressões, torturas e mortes, até destruições completas das redações de jornais.
Nesse cenário, o período que mais se destaca é o da ditadura militar, iniciado em 1964. É dele a maior parte do livro e onde se encontram os casos mais escandalosos de abuso de poder contra os jornalistas. Todos os detalhes sórdidos e descrições angustiantes só são possíveis graças a um puta trabalho de apuração feito pelo Fernando Jorge. Em nenhum momento ele nos poupa da real força do regime e do que ele era capaz de fazer com quem ia contra suas ideias. O livro é corajoso, inclusive, ao apresentar o nome dos torturados e dos torturadores, além das contradições em diversas figuras importantes da época. Tudo isso, vale lembrar, ainda no calor do fim da ditadura, pois o livro foi lançado em 1987, com o Sarney ainda no poder.
Apesar desses pontos positivos muito claros, o livro tem um tom que julguei ser desnecessário para esse tipo de trabalho. Esse tom pode ser sentido logo no subtítulo da obra: “O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa brasileira”. Por ter sido escrito por um jornalista, a todo momento ele toma partido dos colegas de profissão e em raríssimos casos ele apresenta o outro lado da história, de quem agrediu.
Ao dizer isso, não quero afirmar que concordo com as agressões. Pelo contrário, eu abomino completamente. Estou falando isso como leitor, pois me interessei muito em ver as matérias que motivaram os ataques e elas não estão presentes no livro. Em muitos casos o autor só fala que o fulano se revoltou contra uma matéria publicada e ficamos sem saber o teor da matéria. E se ela fosse simplesmente difamatória? O agressor continuaria errado, lógico, mas o jornalista também estaria errado no caso. Isso não é mostrado e eu fiquei bastante curioso.
Até porque, no fim do livro, há uma seção de “Documentos”. Fui todo empolgado até ela, pensando que eram as matérias e as confirmações das agressões. Quebrei a cara. Eram matérias feitas, em sua maioria, após o lançamento do livro e que estão lá apenas para mostrar que os jornalistas continuaram sofrendo nas mãos dos mandões.
E essa minha sensação de que estava faltando algo no livro se agravou quando li uma matéria sobre uma agressão que o então presidente Itamar Franco teria feito a jornalista. Quando você vai ler com calma, vê que o Itamar estava em um momento de folga, em um sítio particular, e os jornalistas todos cercavam ele, impedindo a privacidade. De novo, nada que justifique a truculência, mas os jornalistas estão muito errados nesse caso. Por que eles não poderiam estar errados também nos outros? O livro não nos possibilita ver este lado.
Por causa desse posicionamento, o livro é carregado de palavras fortes e preconceito com quem estava no poder. O “mandões” do subtítulo é repetido várias vezes. Não é raro lermos os termos “fascista”, “brutos”, “mártir”, “hipócritas” e “nazista” atribuídos ao que acontecia aqui no Brasil. Na hora suspeitei que isso fosse um reflexo direto da personalidade do autor e fui assistir a algumas entrevistas dele e, bingo, era isso mesmo.
Fernando Jorge tem, hoje, 70 e poucos anos. É um jornalista reconhecido e um escritor mais reconhecido ainda, principalmente por conta das biografias de Carlos Drummond de Andrade, Olavo Bilac, Aleijadinho, Santos Dumont, Hitler e da elogiada obra sobre Getúlio Vargas. Nas entrevistas, apresenta um jeito enérgico ao falar, típico de um contador de histórias. Sua memória para fatos, nomes e frases é impressionante. Não é à toa que em Cale a boca jornalista os nomes pulem em nossa frente o tempo inteiro e não haja uma contextualização adequada para todos eles. Isso faz com que que nos choquemos com a situação denunciada, mas não nos identifiquemos tanto com os jornalistas agredidos. Poucos são os que ganham uma descrição mais detalhada e, com isso, conseguimos nos solidarizar mais.
Além disso, e agora esse é um problema da edição da Novo Século, a frase da contracapa é de uma prepotência sem tamanho. “Obra clássica, fundamental para todos que desejam conhecer profundamente a história do Brasil e a de sua imprensa”. Tenho um problema sério com livros que me dizem que são os melhores e estampam isso em todos os lugares. No interior do livro também há uma passagem assim, que fala que ele é um primor. Menos, amigo. Menos.
Porém, apesar do que mostrei, Cale a boca, jornalista é um puta livro para entender o complicado mundo do jornalismo e das relações de poder existentes no Brasil. É uma grande aula quando fala da ditadura e mostra que, sim, os tempos já foram muito piores para os jornalistas e que devemos sempre lutar para nunca mais chegarmos naquele ponto de novo.
Cale a boca, jornalista
Fernando Jorge
Novo Século, 2008 (lançado originalmente em 1987)
446 página
P.S.: Não vivi durante a ditadura militar. Quando nasci, ela já havia acabado há quatro anos e o Brasil começava a se ajeitar democraticamente. Porém a ditadura é um tema que sempre me interessou muito (minha matéria preferida em História, ao lado das Grandes Guerras) e, apesar de tudo que já li/vi sobre, continuo sem conseguir imaginar como era ser jornalista nessa época. Hoje vejo pessoas gritando nas redes sociais que vivemos em uma ditadura, comparando com a década de 1960, que o governo do PT é ditatorial, que a mídia é controlada pelo governo… Todas as pessoas que dizem isso continuam soltas e não são torturadas. Isso já diz muito sobre a tal ditadura que dizem que vivemos.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.