Queria acreditar que acordou graças à luz fraca que invadia o quarto, mas era mentira. Quando foi se deitar, já sabia que ele viria. De novo. Conseguia sentir o sadismo no ar. Mas como ele não fazia visitas há algum tempo, achou que, enfim, havia superado. Que estava imune. O celular, porém, marcava 4h06 quando foi despertado. Não havia nenhuma mensagem desde a noite anterior. Pelo menos nenhuma relevante.
− O que você quer?
− Eu te amo!
− Sério, o que você quer dessa vez?
− Nada, só queria ver como você está.
− São quatro da manhã de uma terça-feira e você me acordou. Pareço bem para você?
− Você está lindo!
Deu uma risada e rodopiou no ar antes de sumir. A julgar pelas últimas vezes, ele voltaria. Não se daria por satisfeito enquanto não transformasse aquele fim de noite em um pesadelo. Já havia feito isso várias vezes antes. Mas com o tempo, aprendeu a conviver com as olheiras e com o ciclo de autodestruição sem fim.
A aparição era apenas o primeiro sinal. Na primeira vez, surgiu logo após ela partir. Levou as roupas e deixou um bilhete “Te ligo depois. Desculpa”. Ainda esperava por isso. Há dez meses, inclusive. Naquela primeira noite sozinho, não encontrou prazer no espaço extra da cama. Revirou de um lado para o outro, sem sono. Foi quando ouviu um sussurro no cantinho do ouvido e a luz esverdeada surgiu. O serzinho flutuava em cima da luminária, como se pertencesse àquele lugar.
Naquele momento, não teve forças para reagir. O susto em ver aquele ser não foi nada perto da ferida aberta pelas palavras sussurradas. “Saudades da morena?”. As lágrimas, que teimaram em escorrer durante todo o dia, ensopavam a barba − cultivada no jeito que ela gostava. Desejou estar morto pela primeira vez em sua vida. Não foi a última. E achou que nunca mais voltaria a adormecer em paz.
− Sabia que ela está com outro?
− Eu vi no Instagram.
− Viu aquele stories dela cheio de coraçõezinhos? Aquele que ela aparece beijando o namorado novo?
− Vi.
− Só isso? Quero detalhes. Isso te fez revirar por dentro? Fez você chorar igual a um bebê de novo?
− Você sabe muito bem o que aconteceu.
− Seeeeeei! Mas quero ouvir você falando. É mais gostoso.
− Vai se fuder.
− Me conta, vai! Quero ouvir da sua boca.
− Como ela conseguiu me esquecer assim?
− Você é um bosta!
− Eu sei.
− Nenhuma mulher vai deitar de novo nessa cama com você. Só eu.
Em um único movimento, saiu de cima da luminária, entrou embaixo das cobertas e sumiu de novo. Mas agora já tinha despertado de vez. O celular marcava 4h37 e ainda não havia nenhuma mensagem. Esperava em vão. Ela sumiu. Nunca retornou uma ligação. Não atendia o interfone. Não quis recebê-lo no escritório. Agiu como se o namoro nunca tivesse existido. Como se os dias que passaram juntos fossem um grande desperdício de tempo. Não entendia. Não queria aceitar.
Foram felizes pelo tempo que ficaram juntos. Pelo menos queria acreditar nisso. Cinco anos e quatro meses desde o primeiro beijo. Dois anos e oito meses dividindo a mesma cama. Mais de uma centena de filmes assistidos. Seis viagens para a casa dos pais. Quatro casamentos de amigos. Dois batizados. Uma vida inteira defenestrada como se não significasse mais nada.
− Não adianta olhar o celular, ela não vai te responder.
− Eu sei.
− Então para que você mandou a mensagem?
− Ela não pode estar com outro.
− Ela está transando com outros desde que saiu daqui.
− Não está!
− Cada coraçãozinho naquela foto é uma vez que eles treparam. Na cama, na cozinha, no carro, assistindo ao filme que vocês gostavam, de quatro, gemendo e ofegando igual a uma…
− Para com isso, caralho!
− Ela te fodeu bonito.
Deu uma última risadinha e sumiu. Já tinha feito seu trabalho. Deixou um rastro verde para trás, que iluminaria o quatro até a luz do sol finalmente bater na janela. Mas ainda eram 4h58. A semana seria longa.
Para ler ouvindo: Never sleep – Saviour
Esta crônica faz parte do Music Experience
Desafio cumprido, senhor Caeté. Na hora que coloquei a música para tocar, já imaginei que fosse um desses metais que você gosta, com uma pessoa gritando ao fundo como se estivesse sofrendo a pior dor do mundo. Acertei em cheio. Não é meu estilo preferido, mas foi bacana o suficiente para eu trazer algo mais onírico para essa crônica. O pequeno demônio fica feliz de poder desgraçar a cabeça do meu personagem, espero que você também curta o resultado.
Sobre a sua crônica mais recente, achei uma ótima releitura de When a man loves a woman. Nunca imaginei que dali sairia uma história gore e você foi lá e colocou as tripas em cima da mesa e fez um lacinho com elas. Se era pra chocar, você conseguiu!
Mas agora quero ver o que você vai aprontar com a canção Capim Canela, do Mc Brinquedo (feat. Mc Pedrinho). Se eu entrei no seu mundinho do metal, é hora de você entrar nos meus funks!
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.