Henrique só conseguiu terminar a arrumação da mala por volta das oito na noite. Não havia checado gasolina, parte mecânica do carro, hospedagem. Nada. Sabia apenas que precisava estar em João Pessoa às oito da manhã do dia seguinte e que já estava atrasado. Tudo porque pretendia dormir suas oito horas de sono e nada tirava isso de sua cabeça.

Já com tudo guardado – ou pelo menos era o que esperava -, correu para o posto de gasolina mais próximo. Deu uma última olhada para Recife através do retrovisor, abasteceu o carro e pegou a estrada. Por instinto, encaixou o pen drive no rádio. Aquela música do Coldplay que ele sempre confundia o nome começou a tocar. “Speed of sound? Não… Clocks, lógico!”. Lembrou também que se esquecera de trocar as músicas e teria que ouvir a mesma playlist que vinha ouvindo há quase um mês.

– Paciência, a viagem é rápida – disse para si mesmo enquanto o rádio começava a tocar uma música sertaneja e Chitãozinho cantava os primeiros versos de Evidências.

Sem medo de ser ouvido, Henrique gritava a plenos pulmões pelo amor da mulher amada. “E NESSA LOUCURA, DE DIZER QUE NÃO TE QUERO…”. Foi quando, na beira da estrada, avistou uma garota pedindo carona. Baixou o volume para prestar atenção. Ela aparentava ter a mesma idade dele, se não fosse um pouco mais nova. Baixinha, cabelos escuros e compridos e um corpo de dar inveja a muita mulher por aí. A placa em sua mão informava que ela queria uma carona para João Pessoa. “Perfeito”, pensou enquanto estacionava o carro.

– Precisa de carona para João Pessoa? Estou indo para lá também.

– Sério? Nossa, você não sabe como vai me ajudar. Meu nome é Carolina, muito prazer.

– Prazer, sou Henrique. Pode guardar as coisas lá no porta-malas e vamos seguir viagem.

Disse isso como se seguir viagem com uma mulher daquelas ao lado fosse fácil. Agora que ela estava perto, podia vê-la com mais detalhes. Era baixa, mas no tamanho que ele gostava. Os cabelos eram muito pretos e batiam na cintura. Lindos. O rosto era do jeito que ele sempre sonhara, com olhos pequenos e muito pretos, uma boca carnuda na medida certa para um beijo e as maçãs do rosto levemente levantadas e coradas, que davam um ar de menina para aquela mulher. Mais para baixo, um par de seios que o faziam se distrair da estrada com uma frequência absurda. Isso sem falar nas coxas. As coxas eram a parte do corpo que ele mais gostava. Era só elas terem um belo par que ganhavam a atenção dele na hora. As de Carolina atendiam todos os seus gostos: grossas e torneadas.

– Vai fazer o que em João Pessoa? – disse Henrique, tentando manter a concentração.

– Há alguns anos eu viajo por aí, meio sem destino. Saí de Santa Catarina e desde então tenho andado pela BR 101, conhecendo as cidades e as pessoas. Tem sido uma experiência única.

– Nossa, deve ser incrível. Mas como você se sustenta? Trabalha com alguma coisa que a permite viajar desse jeito?

– Que nada. Eu costumava ser cirurgiã veterinária na minha cidade, mas desisti de tudo quando comecei essa viagem. Desde então eu sobrevivo com os bicos que faço pelas cidades. Sempre tem um animalzinho que precisa de atendimento, então dá para me sustentar. E você, o que faz?

– Sou engenheiro. Minha empresa está realizando uma obra em João Pessoa e eu preciso estar na cidade amanhã às oito para uma série de reuniões. À noite já devo estar de volta a Recife. Pretende ficar quanto tempo lá?

– Não sei. Depende do que eu conseguir, de como for a cidade. São muitos fatores e tudo é relativo quando se vive viajando. Pode ser que eu consiga um emprego temporário bom, que eu curta a cidade. Ou pode ser que eu odeie tudo e queira sair de lá o mais rápido possível.

– Entendi…

Ele queria perguntar mais, mas começou a se achar muito chato e não sabia se estava ultrapassando as barreiras da boa carona – se é que isso existe. Foi quando ela mesma interrompeu o silêncio, quando a voz de Roberto Carlos soltou um “Não adianta nem tentar… me esquecer”.

– Eu amo o Roberto de paixão, mas não consigo ouvir essa música. Ela é triste demais e me lembra um ex-namorado.

Rapidamente mudou a música, mas não ia deixar o assunto morrer agora.

– Mas essa música é linda. Você deve ter tido um trauma muito grande para não gostar dela.

– Não é bem um trauma, mas quando o Antônio ainda estava me paquerando, costumava fazer serenatas na minha janela todos os dias. A música que ele mais gostava de cantar era essa e, depois que a gente começou a namorar, cismou que era a nossa música. Foi o último relacionamento sério que tive.

– Isso foi recente?

– Já tem um bom tempo. Desde então nunca mais me envolvi mais intensamente com ninguém. Nunca consegui esquecer o que ele fez com a minha vida.

– Pelo jeito você o amava muito, não é? Deve ter sido difícil quando ele terminou com você.

– Quem disse que ele terminou comigo? Fui eu que acabei com o namoro. Ele andava desconfiado de que eu o traía, mas não era verdade. Nunca seria capaz de fazer isso, mesmo não o amando.

– Você não o amava? Como assim?

– Acho que esse foi o grande problema da nossa relação. Nunca me apaixonei por homem algum, nunca me entreguei de verdade. Aliás, acho que nem coração devo ter. Enquanto minhas amigas lutavam pelo relacionamento ideal, eu estava focada na carreira e me divertindo. Esse último namorado foi o que durou mais tempo, pouco mais de dois anos.

Ela virou para a janela e ficou olhando para o horizonte. Henrique decidiu dar um tempo. Pelo jeito que falava, ainda estava afetada pelo fim da relação. Essa história de não ter coração devia ser conversa fiada que contava para se enganar. Se ela era capaz de se emocionar com a música do Robertão, devia ter um coração ali sim.

– Mas o seu problema com o Roberto Carlos é só com o Detalhes? As outras você gosta?

– É só com Detalhes mesmo. Acho a voz do Roberto Carlos extremamente sexy e toda vez que o Antônio cantava para mim eu me lembrava da voz do rei na hora. E ficava excitada.

Disse isso enquanto passava a mão na perna de Henrique. Ele, já nervoso por ter a mulher de seus sonhos a seu lado, quase jogou o carro no acostamento. Carolina percebeu o desconforto dele e tirou a mão na hora, se desculpando.

– Não precisa se desculpar. Não vou negar, estou doido com você desde que entrou no carro. Espera só encontrarmos um lugar mais tranquilo para pararmos e vou te mostrar.

Se virou e deu um beijo rápido na boca dela. Não demorou e eles passaram perto de um motel de beira de estrada, com luzes de neon e o sugestivo nome de “Oásis”. Os dois entraram no primeiro quarto vago e foram logo se beijando. O desejo estava no auge, quando ela começou a tirar a roupa.

De costas, Carolina foi tirando peça por peça. À medida que ela se livrava das roupas, Henrique percebia que era capaz de enxergar através da mulher. A princípio achou que estava louco. Quando ela tirou a blusa, ele pôde ver, ainda que embaçado, o espelho atrás dela. Quando ficou completamente nua, ele já estava desesperado com o que via. Assim que ela se virou, um grito quis sair da garganta dele, mas não teve forças.

Toda manchada de sangue, Carolina olhava para ele com os olhos embaçados, de onde escorria um líquido preto. Pelo corpo, manchas de agressão. No rosto, os lábios que ele tanto admirara agora carregavam um sorriso sádico e dentes apodrecidos, que riam diante da visão daquele homem nu.

Sem reação, Henrique só conseguiu olhar enquanto a criatura se aproximava. Com um golpe, Carolina arrancou a cabeça do desafortunado amante e o sangue se espalhou por todo o quarto. Com as mãos, abriu o peito do homem e arrancou o coração. Ali mesmo fez o banquete. Lambuzada de sangue, saiu do quarto para não mais ser vista por ali.

Foi para algum outro ponto da BR 101, com outro visual. Esperava encontrar a próxima vítima o mais rápido possível. Ainda tinha fome.

Para ler ouvindo: The Fray – Heartless

Esta crônica faz parte do Music Experience