Com pequenos spoilers
O palácio de inverno
John Boyne
Publicado em 2009
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O ano é 1905. A Rússia vivia uma rápida transição para o capitalismo após a emancipação dos servos, ocorrida em 1861, e ainda tinha que lidar com o desastre que fora a guerra russo-japonesa. No meio da confusão, a aristocracia do país procurava manter o absolutismo a qualquer custo. O resultado dessa insatisfação foi a manifestação pacífica de mais de um milhão de pessoas em direção ao Palácio de Inverno, morada do czar russo Nicolau II, e o posterior massacre dessas pessoas que caminhavam até lá.
Agora pula para 1915. Um ano após o início da Primeira Guerra Mundial, a Rússia sofria grandes baixas em seus exércitos e a população estava bem mais insatisfeita do que há 10 anos. Apesar disso, o czar e sua família continuavam a viver no luxo, como a ignorar que as pessoas passavam fome e lutavam para sobreviver a poucos metros do Palácio. Esse cenário lembra um pouco aquele que culminou na Revolução Francesa, mas no caso russo, a aristocracia sabia exatamente dos problemas e ainda tentaram fazer alguma coisa. Não que tenha adiantado, pois os bolcheviques tomaram o poder e a família do czar teve o mesmo destino da monarquia francesa.
Antes que vocês me xinguem por essa pequena retomada das aulas de história, preciso dizer que ela é essencial para entender o contexto que cerca O palácio de inverno. O livro conta a história de Geórgui (lê-se Iórgui) Danielovich Jachmenev e de como sua vida foi alterada para sempre quando ele, por um golpe de sorte, se tornou o guarda-costas do czarevich Alexei Romanov, futuro czar russo.
O livro segue duas linhas temporais distintas. A primeira delas começa em 1981, com Geórgui já com 82 anos, ao lado da cama de hospital onde sua mulher, Zoia, está prestes a morrer. Um casamento que durou mais de 60 anos e ultrapassou as barreiras de um exílio forçado da Rússia. A partir de então essa linha temporal vai regredindo, mostrando como foi a vida do casal nos anos que passaram juntos até chegar ao ano de 1918, quando saíram de seu país natal.
A outra linha temporal acompanha o Geórgui de 16 anos, em 1915. O pequeno vilarejo de Cáchin, onde o garoto morou por toda a vida toda, vai receber de passagem o primo do czar, o grão-duque Nicolau Nicolaievitch. Porém no caminho, há uma tentativa de assassinato e Geórgui acaba, por um golpe de sorte, salvando o grão-duque. A gratidão de Nicolau foi tão grande que levou o garoto para São Petersburgo e, a partir daí, a história segue linearmente até se encontrar com a linha temporal anterior, em 1918, no clímax de todo o livro.
Só pelo tanto de nomes e contexto que precisei falar neste início, já deu para perceber que este é um romance histórico. John Boyne tem o costume de pegar um período, usar um recorte e escrever algo sobre ele, vide O menino do pijama listrado, O pacifista e Fique onde está e então corra. Neste caso, é mais um livro sobre a Primeira Guerra Mundial, só que com o enfoque na Rússia. Porém em O palácio de inverno, ele ultrapassa essa ideia e faz com que as figuras históricas sejam, de fato, personagens do livro.
O último czar e sua família (esposa e cinco filhos) são retratados com fidelidade. Os grandes evento da época foram todos abordados e os detalhes da vida dessas pessoas, como a hemofilia de Alexei e o fato da esposa e as duas filhas mais velhas trabalharem na cruz vermelha, são mostrados com exatidão, o que faz com que o livro ganhe novos significados. Podemos ver Anastácia, aquela famosa do desenho, interagindo com suas irmãs. Ou mesmo Rasputin, aquele famoso por seus atos sexuais, influenciando a corte. O retrato dos últimos anos do czarismo russo é tão fiel que poderia até ser real, tal a humanidade que o John Boyne dá para cada um dos personagens.
Porém não é isto que define O palácio de inverno. O próprio autor disse que ele tinha a ideia de escrever algo sobre os Romanov desde que tinha 14 anos, mas só trouxe a tona quando decidiu que iria escrever uma história der amor. Isso mesmo, este livro é, acima de tudo, uma belíssima história de amor e de como ele supera tudo para que duas pessoas possam permanecer juntas até o fim.
O amor é mostrado das formas mais singelas possíveis, seja na cabeceira da cama do hospital, quando Zoia está prestes a morrer, ou quando os dois saem da Rússia e se veem sozinhos em Paris, tendo que lidar com uma situação nova de vida e com o peso do que aconteceu no passado recente. São pequenos momentos, atritos e declarações, que fazem com que o livro seja uma imensa aula de amor ministrada por Geórgui e Zoia. Ou, como ele mesmo fala, Geórguiezoia.
A escrita do John Boyne contribui muito para que nos identifiquemos com as ações dos personagens. Por ser uma narrativa em primeira pessoa, acompanhamos de perto o que Geórgui vê dentro da corte russa e os estranhamentos que ele tem ao confrontar aquele estilo de vida com o do resto das pessoas. Vemos também o amor inabalável que ele ter por Zoia, em suas mais diversas formas. Outro ponto positivo é que em nenhum momento o autor subestima o leitor. São diversas as passagens temporais e conseguimos entender bem o que aconteceu entre elas sem que Boyne precise explicar exatamente o que houve.
Eu também disse que as duas linhas narrativas se encontram em 1918 e não é por acaso. Para quem conhece um pouco a história e os rumores sobre o destino dos Romanov, o plot twist do final é previsível, mas nem isso diminui a grandeza da obra. Pelo contrário. Traz mais significado para o livro inteiro. Se você prestar atenção, as dicas sobre o final estão presentes a todo momento, desde a diferença de idade entre Zoia e Geórgui até pequenos comentários feitos por ela e ele ao longo da história.
Mas nada é tão emblemático para o plot twist quanto o título do livro em inglês. The house of special purpouse é traduzido como A casa para fins especiais e tem dois significados. O primeiro é histórico, pois este é o mesmo nome da casa que por último recebeu os Romanov, em seu exílio na Rússia. No contexto do livro, é também o título de uma obra inventado por Geórgui enquanto conversava com a mulher que matou sua filha. Ele disse que era “uma história de culpa. E de acusações. Acusações infundadas”. E essa definição é perfeita para O palácio de inverno.
Já falei antes e volto a falar: sou muito putinha do Boyne. Este livro mescla uma boa história, suspense na medida certa e uma forma narrativa construída de forma exemplar. Ao fim da leitura, só me resta agradecer. Você conseguiu de novo, John Boyne. Obrigado.
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Se quiser ver mais algumas opiniões sobre O Palácio de Inverno, já saiu o vídeo no canal sobre o livro.
O palácio de inverno (The house of special purpouse)
John Boyne
Companhia das Letras, 2013 (lançado originalmente em 2009)
453 páginas
Tradução: Denise Bottmann
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.