Antes de inaugurar a nova coluna do Estamos em Obras, vou apresentar aquele que escreverá aqui todos os domingos:

O nome dele é Rafael Fontana, morador da ilustre cidade de Caeté (de onde vem um dos seus inúmeros apelidos – bullying é para os fracos). Ele é técnico em química, mas tenho certeza que se fosse para escolher ele faria Letras. Aliás, ele até começou a faculdade, mas sucumbiu ao lado negro da força (a.k.a. exatas) e hoje cursa Química.

No meio disso tudo, ele escreve. E escreve muito bem, a propósito. Quem já está acostumado com meu estilo de escrita vai perceber que o dele é muito, mas muito diferente. E foi por isso (não porque ele é meu amigo, juro) que convidei ele para escrever uma crônica semanal aqui no blog. Queria trazer diversidade literária pra esse lugar, então espero que vocês gostem. Com vocês, Rafael Fontana.  

V

Amava-o. Simples e ardentemente. Mas não era correspondida. Passou a amá-lo mais intensamente, então. Aliás, passou a amá-lo mais do que a si própria. Passou a cultivar o hábito de colher gafanhotos. E tornou-se ávida pela cultura xiita. Mergulhou nas profundezas de seu passado e apagou cada vestígio do que poderia atrapalhar sua metamorfose. Desejou ter lindas asas, para que assim pudesse impressioná-lo. Tentou impressionar. Fez o que jamais se permitiria, o que sequer lhe agradava, mas nada surtiu efeito. Começou a se desesperar. Sentiu que o havia perdido para sempre. Adentrou a floresta gelada da inquietação e perguntou a cada velha árvore o que achava de sua sina.

Como não obtinha resposta alguma que a satisfizesse, colocou o ouvido no chão, na esperança de sentir alguma vibração positiva. O que sentiu foi uma vontade imensa de chorar. Mas não o fez. Rabiscou no ar outras táticas. Conjecturou dezenas de novas situações. Sentiu pena de si. Sentiu ódio dele. E foi aí que o amou com mais vontade. Por se sentir viva. Por ter um objetivo tão nobre. Voltou a sentir ódio. Dessa vez de si própria, já que dela era a culpa. Lembrou-se de quando estavam juntos. De sua insegurança. De sua vontade de deixá-lo e de sua frieza. Mordeu os lábios com tanta força que foi capaz de sentir o gosto do sangue. Tentou entender o motivo de tantas vezes tentar afastá-lo. Tentou se entender. Enxergou-se como uma quimera de cinco cabeças. Devaneou sem se preocupar com o tempo. Sua cabeça de hiena ria daquilo tudo. Achava muito inspirador agir de forma zombeteira. Gargalhou forte quando vislumbrou as inúmeras cenas em que brincava de não sentir nada. Enquanto isso sua cabeça de raposa tramava meios de recuperar o tempo perdido e reconquistar seu posto de direito. Ardilosa e astuta, não se preocupava com os meios.

Na ponta oposta, sua cabeça de escorpião arquitetava o melhor momento para introduzir seu veneno no amante. Faria uso de sua poção da vingança: suave, doce e extremamente viciante. Era traiçoeira e queria que ele sentisse a mesma dor que experimentava. Não. Desejava que ele sentisse o triplo daquela dor! Já a cabeça de avestruz, tão indelicada e irredutível, achava a situação uma afronta aos bons costumes (seus bons costumes!). Se as coisas não fossem do seu jeito, de jeito algum deveriam ser! Vejam bem, que disparate! Querer que se enxergue sob outra ótica! Tímida, franzina e quase sem voz, figurava na região central a delicada cabeça de borboleta, a qual desaprovava a atitude das demais e ansiava por uma vida de harmonia com o amado. Entretanto, era tão pequena e imatura que não era capaz de transmitir mais do que uma suave e efêmera sensação ao subconsciente da quimera. Seu corpo extravagante, coberto com as mais variadas penas, era o artefato sedutor perfeito. Mas por que ele não mais se interessava?

Quebrou o vidro do mundo de sonhos ao cair novamente em si. Sentiu frio. Sentiu dúvida. Sentiu dor. Sentiu desprezo. Quis sentir paz, mas acabou vazia. Sem forças para continuar, deixou-se cair ali mesmo onde estava. Não sabia onde estava. Isso não era importante, ademais. Sem fome alguma, não sentia necessidade de se levantar. Foi assim que passou os dias seguintes. Sem esperança, permitiu que a rotina se estendesse pelos meses que se passaram. Cansado de ver aquela cena desconcertante, o sol tentou amainar a dor com seus raios, não logrando sucesso. As estações passaram e nem mesmo o frio do inverno foi capaz de impeli-la a levantar. Por anos permaneceu no mesmo local, na mesma posição, sem a menor intenção de mudança. Nem mesmo a Morte poderia intervir. Sua foice seria completamente inútil. Cortar o que já está despedaçado? Realmente ineficaz. Como uma princesa amaldiçoada ela esperava por seu galhardo salvador. Com a mesma esperança tola e inerte, comum a essas trágicas donzelas maniqueístas. Talvez por esse motivo se explique o que lhe veio a suceder. Não se sabe se por capricho da Primavera ou por crueldade do Destino, mas a amante não correspondida veio a se transformar em uma flor maravilhosa, como nunca antes se havia visto.