A burocracia divina é simplesmente impecável. Tudo sempre estará em seu lugar. Todos estarão cumprindo seus papéis até o início do caos. Considerando-se que as regras do jogo não se alteram (estando-se ou não de acordo), pode-se dizer que o livre arbítrio é uma grande bobagem. Uma piada de gosto extremamente duvidoso. Caso algo fuja de sua rota normal, invariavelmente teremos distorções no que comumente chama-se de futuro. Entretanto, o ponto final será sempre o mesmo.
…uma garotinha órfã está destinada a permanecer sem uma família até que complete 13 anos. Isso ocorre porque, antes mesmo do nascimento da referida menina, inúmeros contratos são firmados. Fatores diversos são analisados, como: motivo pelo qual a garota deve ser órfã; família que deve abandonar a garota (seja por negligência, seja por morte); pessoa(s) que a encontrarão; sua aparência física; entre outros milhares de detalhes. E o processo inicia-se mais ou menos assim:
I. O espírito que futuramente se tornará a pobre garotinha toma ciência de seus débitos (em função de seus méritos e deméritos decorrentes de sua jornada até o presente momento);
II. Do alto comitê burocrático da esfera espiritual são estipuladas alternativas para a expiação do espírito e conseqüente pagamento das dívidas;
III. O referido espírito, então, deve escolher a que mais lhe aprouver;
IV. Todas as situações envolvidas são fastidiosamente analisadas (tenha-se em mente: espíritos a quem o espírito deve satisfação, prazos para cumprimento do acordo, envolvimento de outros espíritos e outras);
V. Completa-se o quadro do espírito em questão;
VI. Entrelaça-se o mesmo com os quadros dos espíritos a ele ligados (seja por gratidão, dívida ou qualquer outro motivo);
VII. Firma-se o acordo entre todos os espíritos que serão envolvidos (estejam estes desencarnados ou não);
VIII. Estipulam-se as datas de nascimento, morte, encontros, aquisição de experiências etc.
IX. Encaminha-se o espírito para a sua preparação antes de ressurgir;
X. Ocorre a ressurreição e inicia-se o processo de acompanhamento do espírito, do qual está(estão) encarregado(s) o(s) espírito(s) que foi(foram) designado(s) para guardarem-no.
Tendo início esse demorado processo, o espírito nasce na forma de uma garotinha. Em conformidade com as regras, a mesma é abandonada no lixo e encontrada por um cidadão de bem que a entrega às autoridades. A menina é encaminhada a um orfanato no qual recebe um nome. Ela cresce. É adotada aos nove anos. Tendo em vista que este é um fato completamente planejado e lembrando-se que a garotinha deve permanecer sem uma família até os 13 anos, ela e seus pais adotivos sofrem um acidente automobilístico. Apenas ela sobrevive. Tudo ocorre como já se havia previsto. Contudo, quando completa 11 anos, é pretendida por uma família que não se encontrava no contrato inicial. Assim sendo, poderíamos dizer que haveria uma falha…
…por motivos burocráticos terrenos, o casal só consegue obter a guarda da criança dois anos após o início das transações. Coincidência? Não. Não existem coincidências.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.