Nasci choroso, olhos fechados – medo de ver o mundo, de estar no mundo, de ser o mundo. Mais não me lembro: talvez tenha sufocado as memórias ou apenas nunca as tenha guardado.
A infância – doce dádiva da ignorância – mágica foi; de fadas e sombras encheu-se minha mente. As tardes de sol, todas belas e longas, vividas na calma de quem não aguarda. As noites de lua, tão sempre de estrelas, sonhadas com cautela à lembrança do bicho-papão. Das brincadeiras recordo-me bem: tantas e tantas foram as estripulias que duvido, com o pé batendo no chão, haver no mundo uma criança que se divertiu como eu. As viagens à fantasia, os gols e queimadas, os desenhos tortos e sempre mal feitos, os irmã-primos-primas-amigos-colegas que compunham o elenco. Momentos ímpares. Momentos ímpares… O violão – que gigante! – que tocava minha mãe, que tocava meu ser, que tocava os males e trazia sorrisos. Os dribles que dei no meu pai – todos de mentirinha, é claro! – quando na imensidão do campo sonhava-me craque. Os jogos que joguei com minha irmã, sempre acompanhado de meus primos e primas, os quais pareciam nunca ter fim e menos ainda causavam estafa.
As aventuras por terrenos baldios, matas fechadas, matas abertas, montanhas, ruas desconhecidas, cemitérios, planetas, galáxias, …, vividas no calor do entusiasmo nutrido por meus amigos e eu. Os passatempos com os quais passei o tempo sozinho, como escavações no quintal em busca de fósseis e/ou ouro, a criação de lagartas na esperança de um dia ter uma borboleta de estimação, as revistas em quadrinhos, os desenhos animados, as ideias mirabolantes para obter dinheiro (o que eu faria com ele?)… Chocolate figurinhas cachorro gatos (nunca fui fã) histórias para dormir disco com clássicos infantis livro para colorir lápis de cor vermelho eu gosto pipa eu não sei fazer mas comprava na esquina o vento a chuva os barquinhos deslizando na enxurrada cachoeira pedras preciosas cristal quartzo casa da minha avó café (gostei-não-gosto-mais-hoje-gosto-outra-vez) biscoitos lata de biscoitos quadro casa do meu avô quintal mangas jabuticabas milho mingau doce-de-leite sítio patos na lagoa meu primo na lagoa dos patos risadas perdidos entre as bananeiras goiabeiras rede balanço direita-alto esquerda-baixo direita-alto esquerda-baixo curral rolar na grama nadar mergulhar pedras no fundo árvores meu relógio entrou água coloca no sol pra secar sol guarda-chuva sol guarda-chuva sol nada de blusa de frio cobertor assistir televisão dormir acordar brincar correr preguiça de ir à escola ler é legal gosto de escrever contar histórias desenhar desenho é legal leão urso tigre girafa zoológico ir de carro perder o caminho achar o caminho serra do caraça antes ou depois da praia mar água salgada areia fiquei de cama eu quero nadar futebol picolé água de coco parentes ônibus viagem de volta camisa do atlético campainha de madrugada cansaço o passeio foi bom ônibus para a casa do meu avô tarde quente nada para se preocupar…
Mas nem só de alegria vive o homem: atravessa o vale dos infortúnios e sai apenas se for forte. As más experiências existem. Não insignificantes. Também, talvez, não mencionáveis. Ademais, o inferno é extremamente pessoal e não cabe a mim descrevê-lo.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.