Lugar Nenhum é um local muito desagradável. Não digo que é completamente desagradável, contudo. Mas algumas construções e suas razões de existência pesam muito em meu julgamento.
Citemos a maldita Casa das Lágrimas. Nome um tanto quanto pitoresco, não acha? Pois eu acho totalmente adequado, afinal, as pessoas só ingressam em tal lugar com uma única e exclusiva finalidade: chorar. É verdade! Também acho bastante absurdo, que fique claro. Mas, fazer o que? As coisas são assim hoje em dia. Tudo reduzido a negócios. Inclusive lágrimas. O preço para se entrar em semelhante templo da tristeza já é um ótimo motivo para se começar a chorar. Um absurdo! E ainda pagam por isso!
Eu, mero mortal, não sou capaz de compreender. Não há infinitos outros fins para o dinheiro? Não o cultuo, apenas admito que é um molho de chaves. Deixe estar… Para que me preocupar com os desvarios alheios? De qualquer maneira, o xis da questão não é esse. Retomemos a análise da Casa das Lágrimas.
Por que não começar falando de seus tons de azul? Quem nunca ouviu dizer que azul é a cor da tristeza? Pois bem, para quem associava o azul à felicidade extrema: considere-se um louco. Ou, se deseja se entristecer e derramar lágrimas, procure outro tipo de lugar para visitar. Como ia dizendo, são vários os tons de azul. Talvez sejam tão variados como o leque de opções de diversão, quer dizer, de anti-diversão oferecidas. Tudo depende do grau de frieza e falta de tato em que a pessoa se encontra. Para cada situação há um quarto com uma tonalidade específica. Por favor, não me peça para distinguir os tons. Muito provavelmente direi algo do tipo: “para mim são todos iguais!” ou “ mas isso não é verde?”. Pode-se acabar pensando que a escolha de um dos aposentos é algo complicado e até mesmo muito falível. Entretanto, isso não é problema. A Casa conta com uma equipe altamente especializada que avalia os casos com muita paciência e discrição, logo, cada hóspede (ou seria paciente?) é direcionado a um quarto de acordo com sua personalidade, por assim dizer, sendo lhe poupado o árduo trabalho de sentir qual tonalidade o entristece mais.
Aliás, não só as tonalidades, mas o próprio design do ambiente é cuidadosamente projetado para fornecer o maior grau de conforto para os hóspedes. Deixa-me um pouco confuso falar sobre conforto. Não seria mais apropriado dizer desconforto? Certamente fica mais fácil chorar se você não se encontra confortavelmente alojado. Será mesmo? Creio que reflexões mais profundas talvez nos guiassem rumo a uma resposta satisfatória, mas aos diabos! O inferno é algo tão pessoal que não cabe a mim descrevê-lo. O importante é que, seja por conforto ou falta dele, as pessoas não conseguem conter suas emoções. Músicas, objetos, fotografias, tudo é meticulosamente arquitetado.
Como não poderia deixar de ser, quanto menos sentimental você é, maior é o valor de sua diária. Isso mesmo! Diária, eu disse. Um pouco óbvio, podem pensar. Se é mais fácil fazê-lo chorar, menos você precisa pagar. Às vezes a lógica capitalista soa de forma tão maternal! Aliás, esse termo me faz lembrar as regras que o lugar possui. Até um prostíbulo possui regras, por que deveria aqui ser diferente?
Regra número 1: é expressamente proibido sair da casa chorando. Como já iniciei uma espécie de comparação, vou continuar fazendo uso da mesma. Por algum acaso um cliente leva a meretriz consigo finalizado o ato?
Regra número 2: não é permitida a entrada de menores. Desnecessário mencionar que os pobres menores não podem frequentar bordéis.
Regra 3: será cobrada multa do cliente que, intencionalmente, provocar acessos de riso, gargalhadas, sorrisos ou qualquer outro tipo de manifestação da felicidade no interior da casa. Já imaginou uma virgem religiosa correndo aos prantos e pregando em um meretrício?
Regra número 4: não me recordo. Enfim, como em qualquer aspecto da vida moderna, há padrões e modelos a serem seguidos. Lembro-me de que não é regra, mas as pessoas geralmente vestem preto ao entrar e verde ao sair. O preto é perfeitamente explicável, mas o verde deixa em aberto um mundo de questões. Seria a simbolização da esperança de uma vida menos rígida? Ou da esperança de nunca mais voltar à Casa? Não voltariam por causa da comida? Acho que não, pois a mesma é simplesmente estupenda! Não importa.
O que sei é que os motivos que impelem as pessoas a procurarem semelhante auxílio são, não raro, os mais bizarros e banais possíveis. “Não choro faz trinta anos”! Trinta anos sem derramar uma lágrima, sequer? E que tal este: “Desde que matei uma lagartixa não consigo mais sentir qualquer tipo de emoção”. Oh! Que coisa perturbadora!
No início eu só conseguia enxergar como uma modinha tola e passageira. Hoje vejo que não é passageira. A sociedade atual cultua a efusão. Estar fora dos padrões estabelecidos pelos ditames da moda é algo passível de exílio. Exemplificando: se amanhã você se recusar a usar um colar de lâmpadas pisca-pisca (última moda em Luxus, capital de Lugar Nenhum), considere-se um pária. O que quero dizer é: vive-se um grande paradoxo. Cada vez mais somos obrigados a deixar nossas emoções em prol da lógica produtiva e empresarial do uso da razão e do comedimento. Todavia, somos igualmente bombardeados pelas leis do consumo e pela mídia; molhados pela ingrata chuva emocional das celebridades. O grande problema é saber como agir. Saber como e quando agir.
Talvez seja esse o papel da Casa das Lágrimas: ajudar os menos dotados de controle emocional a encontrar o equilíbrio nesse caos social. Não, não, não. Fui longe demais! O único objetivo do referido estabelecimento é promover a comoção por meio do excesso de sentimentalismo, levando ao choro. E que fique bem claro: só lágrimas de tristeza! Não refuto as observações anteriores a respeito do paradoxo da vida em nosso tempo, mas tenho que admitir que os idealizadores da Casa não dispuseram da mesma perspicácia. Por mais que eu me force a entender, nada consegue influenciar minha sinapse a ponto de fazer-me julgar a Casa como algo diferente de um sistema de extorsão disfarçado. Por Deus! Quer lágrimas? Por algum acaso já experimentou caminhar a esmo por uma rua movimentada de uma cidade grande? Dou minha cara a tapas se disser que nunca viu um mendigo tremendo de frio em sua caminhada. E se isso não é o bastante, sinto informar que sua alma já está perdida.
Viajo há muito tempo percorrendo vários sistemas bem diferentes. A gravidade do planeta Química exerce forte atração sobre mim, mas o astro chamado Literatura é aquele no qual me sinto mais confortável. Nos entremeios e desencontros do caminho, músicas e histórias me ajudam a não perder o rumo.