Era a melhor em tudo. Desde surfar furacões até adestrar caracóis; nada havia em que pudesse ser superada. Achava-se divina. Andava com o pescoço tão inclinado para trás que algum desavisado poderia supor algum problema físico. Mas que nada! Sua altivez, a princípio, assustava, realmente. Entretanto, para aqueles que a conheciam, não passava de um trejeito característico. Não se permitia qualquer tipo de deslize, por menor que fosse.

Lembro-me de uma vez em que chegou a confundir um camelo com um dromedário e ficou por duas semanas inteiras sem se olhar no espelho. Isso foi uma tortura sem tamanho! Não se olhar no espelho? Pode parecer, mas não foi fácil. Imagine um ser narcisista não vendo sua própria imagem durante duas semanas! Simplesmente histórico. Mas passou. E desde então não me recordo de tê-la visto cometer alguma gafe. Pelo menos não nos parâmetros dela, afinal, aquela preocupação excessiva com a aparência e com a opinião alheia para mim era mais tenebroso do que qualquer confusãozinha.

Mas, para ela, a minha opinião não importava. Adorava contar seus feitos. Pelo simples fato de vangloriar-se, que se diga. Pois nada de extraordinário era relatado, tampouco algo que pudesse agregar valor à vida de alguém. Sua eloqüência de cigarra era sensacional! Sentia um prazer incomensurável ao narrar sua monótona caçada ao javali de cauda amarela, quando capturou um espécime utilizando-se apenas de seu charme… Ou então quando contava sobre a invasão não planejada à caverna de lontras-morcego. Quanta emoção!

Não duvido, em momento algum, da veracidade de tais histórias, mas posso dizer que pecavam muito pela carga de vaidade exposta. Tudo bem, não importa. Pelo menos era um ser decente e educado. Isso não se pode negar. Por mais que se achasse acima de todos, era incapaz de menosprezar alguém verbalmente. Que fique bem claro: verbalmente. Isso digo porque sua existência, por si só, já era uma afronta a toda e qualquer forma de vida. Fosse por sua beleza melíflua, fosse por sua voz plangente, fato é que se impunha sem o menor esforço. Seu problema era a obsessão pelo topo e a necessidade de estar em destaque.

Com o passar do tempo, foi ficando entediada. Não que ainda não gostasse de ser o centro das atenções ou o destaque em tudo que fazia. Mas havia se acostumado de tal forma àquela rotina, que estava se tornando algo sem brio. E, se assim fosse, em nada combinaria com ela! Passou a se sentir vazia. Aos poucos foi se percebendo solitária, afinal, sua única companhia – a vaidade – estava tão ofuscada pela mesmice que quase não era possível percebê-la. Chegou mesmo a um princípio de depressão. Que só ela notou, é claro. Não podia mostrar sua face frágil. Se tornaria ridícula se deixasse transparecer seus sentimentos mortais. Não era semelhante a uma deusa? Pois então! Por algum acaso você já viu a lágrima de um deus?

E daí surgiu o oxigênio que faltava após o mergulho. Era disso que precisava para ressurgir triunfalmente. Superaria o mais incrível de seus feitos e surpreenderia a todos com sua nova idiossincrasia. Precisava se transfigurar em seu oposto. Sim! A única forma de impor um novo paradigma a ser superado, seria atacando justamente o contrário de tudo que era. Óbvio! Só então estaria completa. Como não pensara nisso antes? Seria Vishnu e Shiva. Se quisessem superá-la pela virtude, impossível seria. Se por caminhos nefandos fosse, igualmente intransponível se ergueria a barreira. Além disso, mostraria a todos sua incrível capacidade de adaptação e assimilação. Perfeito! Magnífico!

O único problema era encontrar dentro de si o que lhe faltava. Precisava absorver uma emoção nova. E esta se transformaria em um sentimento tão forte, que seria capaz de afrontar seus próprios instintos. O processo seria árduo. Longo. Lento. Só via uma maneira de iniciá-lo: através do modo mais complexo, ou seja, começando por modificar sua mente. Acreditava que se fizesse as coisas da forma mais difícil, seria capaz de fazê-las de qualquer maneira. Além disso, fatalmente lograria respeito e admiração. Como havia novamente optado por esse caminho, acabou se contrariando e alterando primeiramente sua aparência. Ficaria irreconhecível. Não, muito melhor. Ficaria passível de pena. E, esse sim, era o impacto que desejava causar.

Ao custo de muitas lágrimas e mechas de cabelo, e depois de dias inteiros dedicados à auto-degradação física, tornou-se mais horrível do que a própria Rainha da Feiúra. Num primeiro momento chegou a acreditar que simplesmente não seria notada na multidão. Afinal, a maioria dos seres era, de fato, bem feinha. Mas o resultado foi realmente assustador: todos a olhavam estarrecidos. Pensou que poderiam vir a inquiri-la sobre alguma enfermidade ou algo do tipo, mas isso não ocorreu. Todos se afastavam como se ela fosse alguma espécie de mau agouro, portadora de uma desgraça contagiosa.

Logo percebeu que não seria preciso alterar seu conteúdo para que fosse reconhecida como a melhor das piores. Sua roupagem era mais do que suficiente para capacitá-la como a ganga da natureza. Mesmo assim pensou que seria mais garantido ir até o fim. Alguma aberração pode nascer a qualquer momento. Nunca se sabe! E mergulhou de ponta na ideia. Empobreceu seu vocabulário, fazendo o possível para deixar de lado toda a sua verborragia. Começou a tratar os outros com desdém e ironia. Passou a amaldiçoar a menor das vicissitudes da rotina e a criar intrigas por pura diversão. Transfigurou-se no ser mais ranzinza e medíocre que esse planeta já teve o desprazer de abrigar.

Passado certo tempo não era mais capaz sequer de ouvir as próprias bizarrices que proferia. Caiu no calabouço da falta de calor. E, sem qualquer aviso externo, notou que era impossível trazer a si mesma de volta. Ademais, havia sido tão intensa a mudança, que não sabia mais como voltar. Na verdade não mais dispunha de meios ou forças para tal. Mas sua empreitada trouxera-lhe algo tão valioso, que a realização de sua vontade febril, no fim, havia sido extremamente positiva. Quando, muitos anos após o início da mudança, deitada no chão frio e sujo de sua cidade natal, viu que ninguém mais se importava com ela, abriu um sorriso largo e expressivo antes de dizer: “Puxa! Como é incrível não ser notada!”