Ao perceber que estava fora de si teve a sensação de que nunca mais poderia voltar. Mas isso era algum problema? Obviamente, não. Uma simples constatação não faria mal. Abriu as asas e voou o mais alto que conseguiu.

Percebeu-se incapaz de manter a empreitada por mais do que uns poucos segundos. Retornou. Notou em seu corpo escamas arroxeadas. Várias moscas voaram em sua direção, como se desejassem apoderar-se de cada milímetro de sua bela face. Entendeu que não eram de verdade. Inspirou-se ao ver o reflexo de seus olhos no lago. Desejou correr tão rápido quanto um guepardo, mas descobriu que não mais possuía pernas. De nada serviriam os tênis que havia comprado. A camisa, rasgada, no chão, sorria como se houvesse sido libertada da sina inglória de convencer e divulgar.

Curvou-se para baixo, tentando visualizar melhor o fundo do lago, imaginando que encontraria algo muito valioso. Talvez um inseto raro? Se parecia mais com um manequim disforme… Forçou-se a enxergar. A curiosa imagem era, definitivamente, algo vivo. Muito curioso era aquele peixe… Talvez fossem cinco horas e 23 minutos. Seria importante contabilizar os segundos? Se estivéssemos tratando de galos, certamente sim. Mas, e quanto ao amanhecer? O que aconteceria? Uma transformação indesejada? Penso que não. Refletiu. Se viu refletida! Isso! Se viu refletida! Mas não se parecia com o que era capaz de lembrar… Ou não se lembrava de como realmente era?

Muito estranho aquele peixe. Seria um anfíbio? Sem pernas; escamas arroxeadas e asas cor de bronze. Ainda não queria acreditar. Negou-se a continuar olhando. Foi incapaz de suportar o peso daquelas imagens que dançavam, giravam e mudavam ao simples movimento de sua mente. Seria aquilo o seu corpo? Uma composição surreal de imagens e frases e marcas? E o pior: de imagens, frases e marcas que nem ao menos conhecia! Chateou-se. De tantas perguntas. Faltava-lhe memória… Cicatrizes de sentimentos não se esquecem. Mas elas são sempre dolorosas, não são? Caso contrário não seriam cicatrizes, seriam… Ondas? Os lagos não têm ondas!

De repente, sem qualquer aviso prévio, viu-se obrigada a recuar. Um gigante felino emergiu do centro daquele lago de águas vermelhas. Como vai você? Quis perguntar e se lembrou de que felinos não falam. Nem tampouco habitam o fundo de lagos, acentuou. Encorajou-se a perguntar. Não obteve resposta, é claro. O animal foi se vaporizando lentamente até atingir o céu e se tornar uma nuvem. Choveu sem demora sobre um descampado não muito distante e uniu-se a outros felinos que já haviam seguido o mesmo procedimento. Ela readquiriu o ânimo. Confirmou sua imagem no lago.

Compreendeu que o corpo nada mais era do que terra, fogo, ar e poeira, misturados com uma porção de pensamentos difusos. Achou estranho. Resolveu reparar melhor. Se achava bela. Vangloriava-se por sua face. Mas algo estava errado. O que seria? Seus olhos? A boca? Ou seriam as bochechas?

Não conseguia decifrar. Dedicou horas inteiras tentando desvendar o mistério. Exausta, suspirou em nome da derrota. Quando pensou em admitir, surpreendeu-se: não tinha rosto! Mas como isso era possível? Não ter rosto! Oras, mas que absurdo! No lugar conseguia ver apenas um amontoado de recortes uniformes que traziam textos de todos os tipos. Veja só, mas que ideia! Simplesmente sem personalidade. Teve a certeza de que estava fora de si e não mais voltaria.