A chuva cai gota a gota encharcando a face congelada da estátua humana. E suas vestes são de concreto e pesam mais de cento e vinte e nove quilos. Carrega na mão direita uma maleta. A mão esquerda não carrega nada. Aliás, carrega o peso do vazio… Suas rugas bem definidas a envelhecem. Seu chapéu de aba curta metamorfoseia-se em uma fonte dadaísta, que jorra a água devorada e cuspida como se fosse sua. E rouba dela a benção, como os povos antigos roubavam cérebros. O coração pesado bate lentamente, com dificuldade de se sustentar. O sangue abstém-se de fluir; lassidão rastejante na insistente teimosia. Não sente frio. Muito menos vontade de não se molhar. Não sente absolutamente nada. Ou não sentir seria o sentimento do não sentimento? Poder-se-ia supor uma falta de emoção carregada de sentimentos de vazio abismal. Abissalmente abismal. Ataraxia em vigor. Ataráxico ou apático? A estátua humana é ambos… A falta de tato e o excesso de desinteresse. Mas então há o que sentir, não é verdade? E se dissessem que é como se dormisse? E se dissessem que é como um coma? E se dissessem que é o desmaio da lucidez? Ou, ainda, se dissessem que é um simples momento de nirvana? Não há nada agora, muito menos além. O samsara transformou-se em uma garotinha travessa que fugiu de casa. E já a encontraram? A garotinha? Não, não. Alguém a estava procurando? Acho que não… Suas travessuras são dispensáveis e substituíveis. Não há porque correr atrás do vento; ele simplesmente não se deixa agarrar. Esguio como uma enguia no cio. E o frio deveria se fazer mais presente! Nem ele para acordá-la, veja bem. Mas como se manter tão impassível? Tão incorruptível? Tão intocável? Tão… Inenarrável? E então fiquei pensando: como se narra uma história que não acontece? Uma história muda e estaticamente mutável ainda vai, mas e essa? Era uma vez uma estátua molhando-se na chuva. E fim. Aplausos e ovações, por favor. Não me peçam autógrafos, tenho preguiça de assinar dedicatórias e minha criatividade não me permite mais do que simples “com esmero”. Penando bem, há certa criatividade nisso. Nada melhor do que a dura e dedicada “esmero” para se utilizar em se tratando de semelhante épico da literatura. Pela falta de sentido e soltando foguetes pelo comedimento.

Divago a passos largos enquanto a estátua permanece inabalável em seu intento. Que seria… Apenas existir. Ou deixar de existir. Porque quando não se reage não se vive. E a ausência de vida nada mais é do que a anulação da existência. E o curioso é que a própria morte assopra vida naqueles que choram… Estaria ela chorando? Impossível saber. Mas acredito que não. Quando não se espera por nada, chorar já se tornou um mimo reconfortante. E descartável. Assim como as rosas, os cartões apaixonados, os abraços apertados e a saudade. É triste jogar tudo fora, mas e daí? O mundo já está cheio de tralhas. Nada melhor do que um quarto com espaço de sobra e organizado, que é pra não atrapalhar o Feng Shui. E é assim que se reconstrói aos poucos a leveza. Uma boa faxina. E um bom banho também! Será que a estátua humana já fez sua faxina? E se ela tiver jogado fora mais coisas do que devia? O fim sempre me leva a pensar em apagar toda a minha playlist. Sem falar nos filmes e roupas e lugares em comum. Mas isso seria me desconstruir. E desconstruir-se além dos 50% inevitáveis do rompimento de uma relação certamente leva à decrepitude. Inevitáveis sim, já que alguém tem que partir. Mesmo que quem parta seja você. A propósito, o que me diz sobre a figura que observo? Não é curioso o modo como se porta? Já começo a acreditar em uma possível petrificação. Pouco a pouco não haverá mais sensibilidade. Mesmo que queira, será incapaz de se mover. Será imortalizada nessa posição execrável. A face da descrença até o fim dos dias. Um belo exemplo de força de vontade! Mas quem precisa de exemplos? Não adianta ver que o fogo queimou a mão de seu vizinho, é preciso que se queime também! Assim se criam os maniqueísmos…