Na teia. Presa. Contorcendo-se. Pegajoseada por aquele finíssimo e quase invisível fio aracnobdomnal. Tateando com as antenas cegas uma brisa qualquer que pudesse levar a alguém: Me ajuda pelamordedeus! As patas que estariam frenéticas – se acaso livres – choravam a inutilidade recém-adquirida. As pequeninas presas abrefechavam-se balbuciando um nítido desespero. O fim é um som muito surdo…

Na teia. Totalmente à vontade. Deliciada por aquela vibraçãozinha gostosa de sua tricotada casa. Vendo oito vezes aquele comercial suculento que diz ao apetite: Mate! Ou ela mata você! E assim esfregava uma a outra duas patas que demonstravam paciência abaixo da média. As quelíceras salivavam uma espera muito faminta. A ansiedade é um sabor tão suculento!

A centímetros da teia. Absorto. Encantado por aquele balé gratuito. E que bailarinos! Moverem-se daquela forma em tão finos fios! Magistral. Não. Esplêndido! Qual seria a ordem da gradação? Deixe estar, isso não me importa. No momento, nada mais precioso do que aquelas criaturinhas desenovelando o próprio futuro. Há horas observava a imobilidade da aranha, que aguardava pacientemente por algum descuido alheio. Por algumas vezes jogou pedacinhos de folhas na teia, simplesmente para ver a assassinazinha em movimento. E que rapidez! Conteve-se ao se imaginar pegando uma indefesa formiguinha e arremessando-a à rede inimiga por pura diversão. E que humor negro ele tinha! Mas realmente conseguiu suprimir tal desejo. Apenas por saber que aconteceria naturalmente. Uma teia. Uma formiga. Uma formiga presa na teia… Nada mais comum. E não é que aconteceu? Quando o momento chega parece que a espera nunca existiu.

Três referenciais. O assassino. A vítima. O extasiado expectador. Este, embasbacado, quase não notou a sutileza da aranha ao se movimentar decidida em direção ao lanche da tarde. Não notou, também, os esforços da formiga ficarem mais vigorosos quando percebeu sua hora se aproximar. Por um instante, o que enxergou foi apenas a pintura. Estática e eternamente sem desfecho. E só precisou daquele instante. Fotografar aquele instante. E como que por mágica algo o beliscou: sentiu-se apertado por certo dilema. Daí em diante os olhos permaneceram vidrados…

A formiga tem o direito de viver. A aranha tem o direito de viver. A formiga será o alimento da aranha. Se a aranha não se alimentar ela pode não sobreviver. Se a formiga servir de alimento para a aranha ela não sobreviverá. Mas a aranha utilizou-se de suas táticas de sobrevivência. E venceu. A formiga falhou em se precaver durante sua jornada. E pagará com a vida. Mas todos merecem uma segunda chance. Mas… E eu? Qual o meu papel nessa história? Sou apenas expectador? Ou devo atuar? Atuar a favor de quem? Libertar a formiga e salvar-lhe a vida? Retiro da boca da aranha o alimento que ela conquistou por direito… Devo ajudar a aranha, oferecendo-lhe uma formiga extra? Torno-me, assim, assassino de formigas… Se eu simplesmente observar estarei favorecendo a aranha, certo? Noto serem maiores as tendências de se compactuar com a fiandeira… Dessa forma compete contrabalançar salvando a formiga, correto? Novamente a fome da aranha… Seria minha intervenção a participação em algo que eu realmente deveria encenar? Ou, pelo contrário, a mais alta intromissão nos desígnios divinos da natureza? Ou será que…

Enquanto a aranha aproxima-se velozmente em câmera lenta, o referencial que se encontra fora da teia culpa-se por não ser Buda.