Preciosa
Sapphire
Publicado em 1996
Compre aqui
Se um dia você pretende ler Preciosa, é bom se preparar. Escrito por Sapphire (pseudônimo da artista performática Ramona Lofton), o livro é emocionalmente pesado. Cenas fortes são mescladas com sentimentos clássicos da adolescência. A pobreza, tanto financeira quanto de espírito, te dá golpes de direita a toda hora. Histórias de vida complicadas brotam por todos os lados e é impossível saber quem é o menos fudido naquele lugar.
A protagonista é Claireece Precious Jones, uma adolescente de 16 anos, negra, obesa, analfabeta e que está grávida pela segunda vez do próprio pai. A primeira filha da relação incestuosa tem Síndrome de Down e fica aos cuidados da bisavó. Precious vive com a mãe, que não trabalha e a explora nas tarefas domésticas enquanto assiste televisão o dia inteiro.
Como desgraça pouca é bobagem, Precious é expulsa da escola onde estuda (por estar grávida) e descobre que tem o vírus da AIDS (passado pelo próprio pai). Sem esperanças na vida, ela pensa até em se matar, mas assume não saber nem mesmo como fazer isso. Sua única salvação é uma escola alternativa, intitulada “Cada um ensina cada um”. Lá ela encontra outras pessoas com histórias de vida iguais ou até mesmo piores que a dela. E também conhece uma educadora, a senhorita Blu Rain, que faz tudo para que suas alunas aprendam a ler e escrever, além de conseguirem melhores condições de vida.
São tantas desgraças juntas que pode até parecer que essa é uma história completamente ficcional, mas não é. Tudo que está escrito vem da experiência da autora na escola em que dava aula, no Bronx. Lá estudavam jovens negros e latinos com bagagens de vida tão pesadas quanto as de Precious. São vidas marcadas por abusos, drogas, miséria e violência. Apesar disso, são pessoas que querem uma segunda chance pelo estudo.
Essa é justamente a situação que Precious apresenta no livro. Acostumada a ser ignorada e humilhada (tanto no antigo colégio quanto em casa), ela vê nas palavras a única chance de construir um futuro melhor para si mesma e para os filhos.
Pode parecer muito bonito, mas não espere um final feliz. Afinal, estamos falando de Precious, que nunca viveu em um conto de fadas. Longe de ser uma história sobre a redenção da garota, essa é uma trama sobre recomeços e esperanças. O final não é dos mais animadores, mas acena para um futuro que pode trazer coisas boas. E isso, em meio a tantos finais possíveis, é o mais interessante.
Com tudo que falei, já deu para perceber que a história é interessante por si só. Junte a ela uma estrutura narrativa curiosa e tudo fica ainda melhor. Narrado em primeira pessoa, o livro é como um grande diário de Precious, em que ela escreve o que pensa, com uma linguagem de quem ainda está se alfabetizando e tem dificuldades com ortografia e gramática. Isso sem falar na organização das ideias, mais próxima à do pensamento do que à do texto escrito. Os assuntos mudam com a mesma facilidade que temos para pensar em várias coisas com poucos segundos. Aí vai o primeiro parágrafo do livro para vocês terem ideia de como ele é construído.
“Eu levei bomba quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. Foi em 1983. Fiquei um ano fora da escola. Esse vai ser meu segundo neném. Minha filha tem Sindro de Dao. É retardada. Levei bomba na segunda série também, quando tinha 7 anos, porque não sabia ler (e ainda mijava nas calças). Eu devia tá na décima série pra poder me formar. Mas não tô. Tô na nona série.”
Além de ser todo escrito assim, outro ponto importante para entendermos a evolução de Precious é pelo vocabulário e pela escrita da garota. Nas aulas, a professora Rain estimula as alunas a escreverem um diário, mesmo elas não sabendo nada. É a partir das anotações feitas por Precious (e das correções feitas pela professora) que percebemos o quanto ela está se desenvolvendo. A mudança na forma de escrever acompanha o crescimento fora da sala de aula. E se no fim ela ainda não escreve de maneira perfeita, é reflexo de que ela ainda não está completamente pronta para enfrentar o mundo, mas que está no caminho certo.
Outro ponto que não pode ser esquecido é que Precious, mesmo com todos os problemas, é ainda uma adolescente. Ela quer se inserida em um grupo de amigos, ter um namorado, um corpo magro. Ela sonha em mudar a aparência (tanto interna quanto externa), mas a vida sempre a leva para longe disso. Sonha em ser amada, mas está acostumada apenas a apanhar. Isso só muda quanto ela entra para a escola alternativa, que a apresenta a meninas que se tornam suas amigas e também são partes importantes no processo de crescimento da garota.
Todas essas pessoas que passam pela vida de Precious e que pincelei ao longo da resenha têm sua importância para o crescimento dela. Voltando às epígrafes do livro, vemos a seguinte frase retirada do Talmude, o livro sagrado dos judeus: “Toda folha de grama tem seu Anjo que se curva sobre ela e sussurra: Cresce, cresce.”. Esses anjos são as pessoas que, de alguma forma, ajudaram Precious em seu caminho. Desde o enfermeiro mexicano que fez o parto da primeira filha no chão da cozinha, passando pela professora, colegas de sala e psicólogas.
No fim, Preciosa é um livro tocante sobre o crescimento de alguém sem esperanças. Um sopro de alívio para aquelas pessoas deprimidas com o mundo. Uma lição de vida em forma de livro.
Preciosa (do original, Push)
Sapphire
Editora Record, 2010
191 páginas
Tradução: Alves Calado
P.S.: O filme, de 2009, é tão bom quanto o livro. Gaboury Sidibe constrói uma Precious sempre cabisbaixa e com semblante sério. Mo’Nique encarna com perfeição a mãe da menina, com destaque para a cena final, uma das mais fortes e impactantes de todo o filme. Foi indicado para seis categorias no Oscar 2010 (Melhor Filme, Atriz, Atriz Coadjuvante, Edição, Roteiro Adaptado e Direção) e levou duas estatuetas (Atriz Coadjuvante, merecidíssimo para a Mo’Nique, e Roteiro Adaptado).
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.