Morte súbita
J. K. Rowling
Publicado em 2012
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Dentre os diversos tipos de livros, um dos mais complicados de ser escrito é o que se enquadra Morte Súbita. Não sei se existe um termo acadêmico para esse tipo de história, mas eu apelidei de “livros de múltiplas relações” (LMR, pra simplificar). Calma que vou explicar.
Os LMR são aqueles livros que acompanham diversos personagens ao mesmo tempo, com histórias interligadas e que interagem em diversas situações. Não há um personagem principal, mas uma gama de pessoas que recebem atenção parecida pela narrativa. O autor não conta a história do fulaninho, mas sim a história de uma população inteira, de uma família inteira. As características de cada um precisam ser bem trabalhadas e é preciso que todas as tramas sejam minimamente interessantes. Um deslize em uma história desse tipo, um furo que seja, pode comprometer tudo. Só para deixar claro com um livro recente que foi resenhado aqui no blog, A Dança da Morte se enquadra como um LMR.
Morte Súbita conta a história da cidade de Pagford a partir do momento que um dos conselheiros distritais, Barry Fairbrother, tem um AVC e cai morto em um estacionamento. Barry era um sujeito boa praça, que fazia todo mundo rir e se preocupava com as áreas pobres do local. Sua morte traz, mais do que uma vaga aberta no conselho, uma vaga aberta também na vida de diversos moradores da cidade.
É sobre essas vagas casuais (vem daí o nome em inglês, The Casual Vacancy) que o livro trata. A partir da morte de Fairbrother, os personagens, que antes viviam em uma tensão velada, desmoronam. É mostrado um lado feio da personalidade de cada um. São pessoas mesquinhas, vaidosas, amarguradas, inseguras, fracas, sedentas por poder, submissas. Pessoas que, como eu e você, têm seus defeitos, que vêm à tona a partir da morte de Barry.
Como são muitos personagens, o início do livro é dedicado a apresentá-los. E Rowling faz isso no melhor estilo Rowling que conhecemos pela série Harry Potter. Após uma pequena descrição física dos personagens, eles já são apresentados diante de alguma situação que, seja com os diálogos ou com o narrador onisciente, nos mostra aos poucos sua personalidade.
Os detalhes apresentados no início são importantes para entendermos a relação de cada um deles. Já sabendo que o livro seria um LMR, meu primeiro passo foi pegar um papel e anotar o nome de cada personagem, quem era e o grau de parentesco com os outros. Isso facilitou demais a leitura, me poupando de voltar várias vezes na leitura sempre que esquecia quem era fulano.
Os temas abordados no livro são pesados, mesmo que trabalhados de forma superficial. O principal deles é a vertente política, que trata de assuntos sérios como distribuição de renda para as cidades pequenas, cortes de orçamentos e preconceito. Também há espaço para traições, sexo, gravidez na adolescência, desejos reprimidos, homossexualidade, entre outros. Graças a essa quantidade de temas, Rowling não se aprofunda em nenhum deles.
Aliás, é bom observar o quanto os personagens adolescentes são mais bem construídos que os adultos. Algumas vezes os pais se tornam caricaturas de si mesmos, mas os adolescentes nunca têm esse problema. As incapacidades de lidar com os problemas em casa, na escola ou com o próprio corpo são bem explorados, sendo eles os melhores personagens do livro.
E o final da história é de uma crueza tão grande que o leitor até se espanta. Tudo bem que existe a máxima de que a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco, mas no caso de Morte Súbita ela arrebenta para um lado tão fraco que assusta. Além disso, os personagens não encontram a sua redenção. Eles se modificam com aquelas experiências, lógico, mas não mudam completamente. Isso é um final bem mais honesto do que dizer que todos viveram felizes para sempre.
Comparação com Harry Potter
Eu li um comentário em um blog que fazia a seguinte crítica ao livro: “A história se perde em um mundaréo (sic) de personagens como Tia Petúnia e Tio Valter. A pergunta é: Você realmente gostaria de ler um livro de mais de 500 páginas sobre a Tia Petúnia? … eu não li nem 300. Desisti”.
Peguei esse comentário porque ele exemplifica bem a crítica de muitas pessoas ao livro. “Ele não parece Harry Potter”, “Não tem um pingo da magia de Potter”. Não tem mesmo. Como o comentário acima mostrou bem, é um livro sobre pessoas normais (trouxas). Eu, mesmo como fã da série Harry Potter, sabia que não veria nada mágico ali. É um livro sobre pessoas comuns, vivendo suas vidas comuns e que não podem resolver seus problemas com uma varinha mágica.
Além do mais, um livro só sobre a Petúnia seria muito foda. Imagina todos os conflitos internos que ela sofre por ser irmã de uma bruxa, ser casada com um homem como o Valter Dursley e ter um filho como o Duda. Dava uma história foda pra caralho. Fácil.
Morte Súbita
J. K. Rowling
Editora Nova Fronteira, 2012
501 páginas
Tradução e edição: Izabel Aleixo e Maria Helena Rouanet
P.S.: Algumas pessoas criticaram o livro por ele ter muitos palavrões e cenas de sexo desnecessárias. Sério, vai se fuder puritanismo do caralho. Todo mundo já teve 16 anos, todo mundo tem desejos e todo mundo fala palavrão. Construir uma história sobre pessoas e deixar isso de lado é ignorar coisas que fazem parte da vida.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.