Era quase dez da noite quando Ricardo chegou à Praça da Liberdade. Rodara pelo Centro de Belo Horizonte por horas, sem rumo. Acabou na Praça e decidiu ficar ali mesmo. Escolheu o banco mais escuro, sentou e acendeu o primeiro cigarro da noite. Queria ficar longe dos casais apaixonados, dos adolescentes em estado inicial de embriaguez, das famílias felizes, dos cachorros fazendo o passeio noturno. Queria um tempo sozinho. Precisava pensar, colocar a cabeça em ordem.
Maletta. Gabriela. Nós dois juntos. Há muito tempo. Ontem de manhã. Hoje à tarde. Sei lá. Tudo estava bem. Livros. Muitos livros. Sebo. Alguma coisa sobre aquele peruano que ela gosta. Vargas Llosa? Deve ser. A gente se divertiu. A gente não costumava se divertir nos últimos tempos. Brigamos feio. Por bobeira? Tinha a ver com Machado de Assis. Dom Casmurro. Foi isso. Ela me chamou de Bentinho. Perguntei por que. Perguntei se ela tinha me traído. Ela me olhou com aqueles olhos de ressaca. Tive certeza.
Se alguém olhasse para as sombras naquele momento, veria apenas o fogo do isqueiro e a brasa do segundo cigarro da noite sendo aceso. Ricardo não era de fumar, mas de alguma forma aquele maço havia surgido no seu bolso e não iria desperdiçá-lo. A fumaça subia tranquila ao seu redor, indiferente à confusão que se passava em sua cabeça.
Não dá mais. Cansei de aguentar calado. Provocações o tempo todo. Não só dela. De todo mundo. Ela me trai e faz aquela cara de cínica. Eu segurei o máximo que pude. Engoli todos os sapos que podia. Foram dois anos de dedicação para aquela filha da puta. Aguentei quieto todas as indiretas. Segurei meus sentimentos para não feri-la. Mas não é só ela. É todo mundo. Acho que o problema sou eu.
Puxou o maço de cigarros do bolso da camisa e acendeu o terceiro da noite. Os casais começavam a ir embora em busca de mais intimidade. As crianças já caíam de sono. Os adolescentes terminavam as últimas garrafas de vinho barato e decidiam para onde iriam depois. E ele permanecia quieto em seu banco, imerso na própria confusão.
Dói. Tudo aqui dentro dói. Todos os anos de provocações guardadas. Tudo que precisei aguentar para manter as pessoas do meu lado. Passivo. Idiota. Burro. Elas querem sair todas juntas. Não vou aguentar. Pai. Mãe. Amigos. Chefes. Colegas de trabalho. De escola. Guardei demais. Segurei demais. Agora tudo quer sair. Ao mesmo tempo. Eu não aguento. Cada lembrança é um sofrimento maior ainda. Vou morrer. Pouco a pouco eu vou morrer.
Então a Praça ficou deserta e o caminho das palmeiras estava vazio. O coreto não abrigava mais os amantes. As pessoas já haviam tomado seu rumo, decidido onde seria o fim de noite. Todo mundo, menos Ricardo, que acendia o quarto cigarro e voltava suas atenções para os próprios pensamentos. Concentrado, não ouviu quando passos se aproximaram dele.
– PASSA O CELULAR!
Tudo parou por um segundo. Puto com a interrupção, olhou e viu um menino de uns 15 anos, no máximo, com um revólver em mãos. A mão do moleque tremia. A mira da arma variava do rosto de Ricardo até a árvore ao lado. Tudo aumentou a raiva que Ricardo sentia.
– MANDEI PASSAR A PORRA DO CELULAR, CARALHO!
– CALMA! Enquanto gritava, Ricardo jogou o cigarro para longe em um movimento súbito JÁ TE DOU ESSA MERDA, SEU FILHO DA…
[POW!]
O ladrão, em pânico, desceu a avenida João Pinheiro rumo a lugar nenhum. Só queria estar o mais longe dali quando a polícia chegasse. Ricardo, em contrapartida, só teve tempo de colocar a mão na altura do coração, onde a bala entrara, e soltar um abafado “obrigado” antes de cair no meio do jardim.
Para ler ouvindo: Coração com buraquinhos – Chiquititas
Esta crônica faz parte do Music Experience
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.