a máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Publicado em 2010
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É tranquilo escrever críticas de livros medianos. Basta apontar os erros e acertos da obra com sensatez que está tudo certo. Escrever críticas de livros ruins é mais difícil, pois necessita argumentos muito sólidos para não soar mal. Mais difícil ainda é escrever sobre um livro muito bom. Nada que eu diga vai fazer jus ao que é a obra em si. Nada vai ser suficiente para cobrir as discussões do livro, como ele é e o que me causou.
Por isso, já faço a mea culpa. a máquina de fazer espanhóis (assim mesmo, em minúsculas por opção do autor) é um desses livros difíceis de serem resenhados. Foi a primeira obra de Valter Hugo Mãe que li e prometo que lerei as outras em um futuro não tão distante, já esperando coisas tão boas quanto a máquina. Enfim, vamos a um pequeno resumo da história.
Tudo começa em um hospital, quando António Jorge da Silva, ou senhor Silva, fica sabendo da morte de sua esposa, que estava junto com ele há quase 50 anos. Ele, então com 84, é mandado pelos filhos para um lar para idosos, onde passa a receber os cuidados necessários e faz várias amizades, podendo pensar e refletir sobre a vida e sobre seu passado.
Apesar de tratar de temas tão sérios quanto a velhice, a perda da mulher amada, o abandono, a proximidade da morte, as críticas à religião e até mesmo ditadura, Valter Hugo Mãe o faz com um lirismo tão bonito que é fácil se perder no meio do livro, imerso naquelas reflexões, brincadeiras e problemas. Sentar para ler a máquina é sinal de ser levado por meio de letras sem hierarquia e de uma história cativante desde o primeiro diálogo, sem travessões. Um passeio gratificante por aquilo de mais bonito que a língua portuguesa pode oferecer.
Quando o senhor Silva chega ao lar, chamado de Feliz Idade, vivencia de tudo um pouco, desde a mais profunda tristeza até o amor. Lá dentro, uma das maiores reflexões que se pode tirar é que, mesmo com 84 anos, ainda não se viveu tudo. Ele, que sempre foi um sujeito dedicado apenas à família, precisou “deste resto de solidão para aprender sobre esse resto de amizade”.
No Feliz Idade, senhor Silva conhece “esse resto de amizade” e vê que o final da vida, que ele julgava ser um excesso, era algo importante. Dentre as pessoas que conhece está o senhor Esteves, aquele “sem metafísica” do famoso poema de Pessoa. No livro, ele é recheado de metafísica e faz uma das mais bonitas reflexões sobre a morte. Também há outra figura importante, o Anísio Franco, conservador do Museu Nacional de Arte Antiga de Portugal.
E, apesar de contar a história de António Silva, o livro também retrata uma parte importante da história de Portugal. Fala daquelas pessoas que lutaram contra a ditadura salazarista e, principalmente, daquelas que se omitiram para buscar a própria sobrevivência nos tempos de crise.
Um dos casos que o livro conta é de como um jovem apareceu na loja do senhor Silva no fim do expediente e lá ficou escondido durante toda a noite. António mentiu para a polícia e liberou o jovem, que se tornou seu cliente assíduo. Sempre lá ia, o revolucionário falava sobre o que estava acontecendo pelo país. Até um dia que a polícia apareceu perguntando sobre aquele jovem e o senhor Silva o entregou. O pensamento foi de proteger a família, mas em nenhum momento ele se preocupou com o destino do rapaz, que provavelmente encontrou a morte nas mãos da ditadura.
Fala também de uma Portugal que pode estar perdendo toda a identidade pela aproximação com a Europa. Mais ainda, fala de uma Portugal em que as pessoas não sonham morar. Em determinado ponto, um dos personagens afirma que “Portugal ainda é uma máquina de fazer espanhóis. é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o facto de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores”.
Essa reflexão é só uma das inúmeras que o livro provoca em cada um de nós. Mas, no fim, é sãos perdas e como lidamos com elas o ponto central. Fala sobre os silvas, pois afinal somos todos silvas (tanto aqui no Brasil quanto lá em Portugal). E a forma como Valter Hugo Mãe fala sobre isso é tão bonita que dá vontade de emoldurar e guardar para sempre na parede da vida.
A edição
Já é de conhecimento geral que sou apaixonado pelas edições da Cosac Naify (RIP). Os livros podem ser caros, mas a qualidade compensa qualquer coisa. Comprei a máquina de fazer espanhóis na última Black Friday, quando a editora colocou todos os livros com 50% de desconto. Veio de complemento para a belíssima edição de Pinóquio, que eu já estava de olho há muito tempo e foi a minha compra principal. A capa, com um papel diferenciado, é gostosa de pegar e traz uma ilustração que só recentemente percebi que eram abutres (ou alguma ave parecida).
E só para finalizar, assista ao Valter Hugo Mãe nessa palestra da Flip 2011 porque vale muito a pena.
A máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Cosac Naify, 2011 (lançado em 2010)
250 páginas
ISBN: 978-85-7503-813-0
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.