Minha mãe sempre foi uma católica fervorosa, com direito a terço na cama, bíblia na mesa de cabeceira e imagem de Jesus Cristo crucificado na parede. O objeto pelo qual tinha maior estima era uma imagem de Nossa Senhora, comprada em Aparecida do Norte e abençoada na Basílica. Ficava em um lugar de destaque da casa, olhando por todos nós. Era voltada para a santa que minha mãe rezava todas as noites. Ave-maria, pai nosso e uma pequena conversa com Deus. Fazia o sinal da cruz, tocava os pés da imagem e ia dormir tranquila.
Nascida e criada em uma cidade do interior de Minas, ela perdeu a própria mãe – minha avó – bem cedo, durante o parto do tio William. Coube a meu avô a responsabilidade de cuidar de duas crianças pequenas e garantir o sustento da casa. Não foi um período fácil. Minha mãe costumava dizer que meu avô nunca teria superado essa fase se não fosse pelo conforto que encontrava em Deus. Mamãe seguiu os passos dele e aprendeu a sempre agradecer pelas pequenas graças que alcançava.
Com os problemas em casa, nunca teve a oportunidade de concluir o ensino fundamental. A escola era longe, o dinheiro curto e o trabalho abundante. Deixou os livros de lado para ajudar o pai em tempo integral. Foi quando a situação familiar melhorou um pouco. Anos se passaram dessa forma, sem dificuldades, mas sem luxos. Ela, o irmão e o pai conviviam em harmonia, em um belo exemplo de família feliz que triunfa apesar dos problemas. Mas como nenhuma alegria dura para sempre, minha mãe levou o primeiro grande baque de sua vida: a morte de meu avô.
Dizem que foi mal súbito. A autópsia revelou uma Doença de Chagas que todos desconheciam e que afetou o coração do vovô de tal maneira que ele nem sentiu a morte se aproximando. Foi-se enquanto dormia, sem incomodar ninguém e deixando apenas um rastro de tristeza como herança. Minha mãe, então com 20 anos, não aguentou mais viver naquele lugar que fervilhava em lembranças e decidiu, junto com o irmão, se mudar para Belo Horizonte.
Com o dinheiro da venda da casa, conseguiram se estabelecer na periferia. Minha mãe tornou-se empregada doméstica em uma casa de família. Meu tio encontrou uma vaga como assistente de pedreiro e, assim, os dois foram levando a vida em uma confortável rotina. Eles trabalhavam durante a semana, descansavam no sábado e iam para a missa no domingo. Era lá que minha mãe encontrava a paz de espírito com a qual levava a vida. Podia conversar com o Pai, agradecer pelos pequenos milagres diários e pedir para que ele cuidasse bem daqueles que já tinham ido encontrá-lo.
Mas não foi só conforto espiritual que a igreja trouxe para a minha mãe. Foi lá também que ela conheceu o grande amor de sua vida, meu pai. Era ele o padre responsável pelas missas de domingo e os dois se conheceram aos poucos. Ele conseguiu enxergar a luz que minha mãe carregava dentro de si. Conseguiu ver a pessoa maravilhosa que ela era e foi acometido por um amor arrebatador. Após muito conversar com Deus, viu que seu destino nada tinha a ver com a sacristia e declarou-se para ela. Largou a batina em nome do coração e os dois viveram a mais apaixonante história de amor que já ouvi.
Tiveram três filhos e sou o mais velho deles. Minha mãe conta que o período da gravidez coincidiu com a primeira visita do papa João Paulo II em Belo Horizonte. Como ela adorava o papa! Uma das lembranças mais fortes da minha infância era a imagem dele em cima do sofá da sala. Aquele sorriso contagiante que só ele possuía. “O dom do carisma”, dizia minha mãe. E eu concordava com ela, sorrindo para o retrato.
Foi durante a visita que minha mãe viveu o momento mais emocionante de sua vida. O cenário estava preparado para o sermão na Praça Israel Pinheiro, no bairro Mangabeiras. Milhares de pessoas foram vê-lo. Minha mãe entre elas, ansiosa para ouvir palavras de paz. “Que Belo Horizonte”, disse o papa ao avistar a cidade aos pés da Serra do Curral. As palavras certas, no momento e no lugar certo.
Emocionada, minha mãe decidiu que precisava chegar perto dele de qualquer jeito. Ela tanto fez que, no final da missa, conseguiu chamar a atenção do pontífice. Ele se aproximou dela, naquele andar calmo de quem já viu muito da vida, e acariciou o barrigão. Perguntou se era um menino ou uma menina. Com lágrimas nos olhos, ela só conseguiu responder que era um menino. O papa então me abençoou ainda dentro da barriga de minha mãe. Ela saiu dali direto para o hospital, já em trabalho de parto.
Meu nome é João Paulo, em homenagem a ele. Minha infância foi em um ambiente católico, cercado com os melhores ensinamentos que a religião podia me dar. Minha mãe sempre conseguiu separar o que havia de melhor e passar para a gente. Aprendi a amar o próximo, a tratar todos como iguais, a respeitar as pessoas e, sobretudo, a acreditar que eu não estava sozinho diante do mundo.
Ainda quando pequeno, ao me defrontar com algum problema, a primeira a estar do meu lado para me ajudar era a minha mãe. “Nada de mal vai lhe acontecer, docinho. Você foi abençoado pelo papa. Não se esqueça disso”, ela costumava dizer. Esse “toque mágico” era o que eu tinha de mais especial. Agarrava-me a ele e conseguia superar todos os obstáculos que apareciam. Até hoje acontece isso. Sou o “garoto abençoado pelo papa” e ninguém pode me tirar isso.
Mas não me considero mais especial do que os outros por isso. A benção do papa não tem o sentido de ter sido abençoado diretamente por Deus. Pelo contrário. Eu não sou o filho mais amado do Senhor. Sou só mais um no rebanho e sei bem disso. Para mim, o significado é mais profundo e mais especial. A benção representa a força de minha mãe, a determinação e a fé que a levaram adiante na vida. É pela memória dela que eu trabalho em busca de um bem maior para o mundo. Meu dom não é ter sido abençoado pelo papa. Meu dom é ter sido filho dessa mulher maravilhosa.
Lembro-me que ela se orgulhava de nunca ter faltado à missa de domingo. Nem quando viajávamos ela falhava. Quando a doença tomou todo o corpo, o padre vinha visitá-la no hospital e mantinha a tradição viva. Ela morreu em paz, com a graça de Deus. A memória dela é tão forte em minha vida que às vezes eu me pego conversando com ela, como se ela estivesse ao meu lado. E eu acredito que ela esteja, velando por mim, por meus irmãos e pelo marido que ficou na Terra.
Eu não estaria aqui recebendo este prêmio se não fosse por ela. Por todo amor que ela tinha por mim e que me ensinou a também ter pelos outros. Por isso que eu queria dedicar a ela. Obrigado mãe, seja onde você estiver. Obrigado por tudo.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.