I
Entre os escombros, Sandra não sabia mais o que fazer. O calor do dia anterior fora acima do normal, um sinal claro do temporal que poderia vir a qualquer instante. E ele até que demorou. Só começou no meio da madrugada, naquele horário que até os ladrões já estão descansando e a paz reina no morro.

Sandra acordou com o clarão do primeiro relâmpago. Pulou da cama com o som do trovão que se seguiu. A casa estava aberta e ela correu para tentar fechar tudo antes que a água invadisse o lugar. Foi quando sentiu um tremor de terra e ouviu um barulho muito alto. Correu até a janela a tempo de ver a catástrofe da rua vizinha em tempo real.

Viu as árvores deslizando morro abaixo. Casas inteiras serem levadas, ainda em pé. Gritos de desespero vindos de lugar nenhum e de todos os lugares. Tijolos, portas, sofás, animais, telhas, pessoas. Os restos de uma vizinhança que ela conhecia há mais de 20 anos escorrerem junto com a lama.

Não se sabe de onde, mas ela conseguiu encontrar forças para pegar o telefone e ligar para os bombeiros. Aconselhada a se proteger em um lugar seguro até a chegada dos profissionais, Sandra nem trocou de roupa e correu para fora de casa ainda de camisola. Ignorou a chuva, a recomendação dos bombeiros e até mesmo o perigo da situação. Sua primeira reação foi ir direto para o local do deslizamento.

Não sabia como, mas precisava ajudar aquelas pessoas. Eram as casas de seus amigos que haviam desabado. Deus ajude, eram seus amigos que podiam estar presos embaixo daquela confusão. Não importa o que dissessem, precisava estar lá. Não se perdoaria se deixasse todos morrerem daquele jeito estúpido.

II
Entre os escombros, Humberto observava o que restou do lugar onde morava. Havia deixado a casa há dois dias, graças à recomendação da Defesa Civil. Dois dias. Por muito pouco ele e toda a família não estariam ali, soterrados, junto com os bens que ele lutara tanto para adquirir ao longo os anos.

Não teve tempo de tirar tudo da casa. Pretendia voltar naquela manhã mesmo para pegar as roupas, uns objetos pessoais e alguns eletrodomésticos. Achou que não daria tempo. Agora era tarde. Não tinha ideia de como se reergueria daquele cruzado de esquerda que o destino lhe dera.

O filho mais velho chorava. O do meio apertava sua mão. A outra filha era muito pequena para entender qualquer coisa e dormia no colo da mãe. Abraçado com a família, percebeu que não ligava tanto para os bens que estavam debaixo da terra.

Recuperar uma geladeira não era nada. Uma televisão não significava nada. “As pessoas se prendem a coisas banais e se esquecem do que realmente importa”, pensou. Objetos são só ligações frágeis com um passado que vai estar sempre vivo na memória. Estar perto das pessoas que se ama é muito mais valioso do que qualquer coisa.

Graças a Deus estavam todos bem.

III
Não dá mais pra voltar.

IV
Entre os escombros, Hércules cavava à procura de sua dona. Saiu de casa cedo para dar uma volta no brejo do bairro vizinho e, quando voltou, já não havia mais casa. Não havia mais dona, não havia mais proteção. Não havia mais nada. Só um monte de entulho e o mundo inteiro embaixo de suas patas.

Havia muitos humanos por ali, revirando a terra. Muita gente que ele nunca havia sentido o cheiro antes. Pessoas que não se importavam com ele. Todos em cima do lugar que um dia fora sua casa. Ou pelo menos que ele achou que fosse sua casa.

Enfiou o rabo entre as patas e ficou ali parado. Queria encontrar sua dona e lamber o rosto dela como fazia todo dia de manhã. Queria que ela brincasse de bolinha com ele. Queria que fizesse carinho atrás de sua orelha e o colocasse no colo para assistir televisão. Já estava com saudades.

Então sentiu o cheiro dela. Parecia distante, mas estava ali. Quase podia ouvi-la gritando seu nome. HÉRCULES! HÉRCULES! Então começou a cavar e latir. E tinha que continuar cavando. Tinha que continuar latindo. Ela estava ali. Certeza.

V
Entre os escombros, soldado Rodrigo precisou respirar fundo para encontrar a força necessária para continuar com o trabalho. Havia retirado o primeiro corpo sem vida debaixo da lama e tinha a terrível impressão de que aquele não seria o último. Odiava novembro por causa desse tipo de tragédia.

Receberam a primeira ligação por volta das quatro da manhã, de uma mulher que relatou que a rua vizinha havia “descido barranco abaixo”. Logo depois vieram outras ligações. Algumas mais desesperadas que outras, mas todas com a mesma mensagem: deslizamento grave de terra no morro. Foi acionada uma força tarefa e, em menos de dez minutos, todos já estavam prontos para sair.

Quando chegaram ao local, era impossível prever quantas pessoas estavam desaparecidas ou qual era o real tamanho do estrago. A única coisa que se sabia é que era necessário agir rápido. Vidas dependiam daquilo. A primeira providência foi isolar a área e evitar que novas tragédias acontecessem. Ainda chovia, e isso era sempre um problema. Depois começaram as buscas por sobreviventes.

Mas não dera tanta sorte assim com o primeiro. Quando Rodrigo localizou um braço no meio do entulho, já previu o pior. Era um rapaz de mais ou menos vinte anos, soterrado pelo que parecia ser uma parede. Olhos inertes, fixos em um ponto além da compreensão do soldado. O primeiro baque de muitos que ainda levaria naquela manhã.

E quando a esperança parecia fugir, ouviu os latidos de um cachorro. Isso era um bom sinal. Sempre era. Reuniu alguns homens que estavam por perto e foi conferir se havia alguém naquela região. Ainda tinha esperanças. Precisava salvar aquelas pessoas.

VI
Não há mais.

VII
Entre os escombros, Isabella enfrentava o maior desafio de sua vida profissional. Microfone na mão e pronta para entrar ao vivo, tremia como uma iniciante. Nenhuma faculdade de jornalismo a preparara para aquela situação. Estava acostumada a cobrir amenidades, não uma pauta tão extrema quanto aquela.

Para onde quer que olhasse, Isabella só conseguia ver destruição. Famílias inteiras desaparecidas, pessoas em uma busca de algo perdido, bombeiros trabalhando para resgatar o máximo de soterrados. Potenciais histórias por todos os lados. Podia ser o sonho de qualquer jornalista, mas não o dela. Pela primeira vez, não tinha tanta certeza se conseguiria contar as histórias da forma que mereciam.

Quando o sinal vermelho se acendeu e o âncora perguntou como estava a situação até o momento, ela sentiu o nó na garganta ressurgir. Respirou fundo e decidiu fazer daquela a melhor reportagem de sua vida. Deu os números oficiais, a posição dos bombeiros, da prefeitura da cidade e, quebrando todos os protocolos, contou as pequenas histórias que vira até o momento.

Falou do homem que revirava os entulhos em busca da filha que continuava desaparecida. Da família que se abraçava atônita por ter escapado com vida. Da mulher que chorava ao ver que tudo que ela construíra ao longo dos anos havia ido embora para sempre. Da criança que se agarrava ao bichinho de pelúcia, a única coisa que sobrara da casa, e olhava para aquilo tudo sem entender direito que não poderia mais voltar para casa.

E chorou pela primeira vez em rede nacional.

VIII
Entre os escombros, Kamilla não enxergava nem mesmo as próprias mãos. O espaço para se mexer era mínimo. Conseguia sentir o estrado da cama pressionando seu peito e, na perna, nada além de dor. Naquele momento, era impossível saber se quebrara algum osso ou se alguma coisa pior acontecera. Torcia para que fosse apenas a primeira opção.

Sobreviveu por um golpe de sorte. Quando sentiu o primeiro tremor de terra, correu para baixo da cama. Não sabia o porquê de ter agido assim, mas com certeza foi o que salvou sua vida. Impediu que ela fosse esmagada pelos escombros da laje ou pelas paredes que deslizaram barranco abaixo. Era aquele espaço que a mantinha viva, pelo menos por enquanto.

Mas sentia frio. Muito frio. Sentia sede. Muita sede. Sentia dor. Muita dor. Não conseguia avaliar se estava presa por minutos, horas ou dias. A noção de tempo não era importante. Tudo o que queria era sair dali. O cérebro pedia por mais oxigênio, artigo de luxo naquele espaço. Usava as últimas forças para gritar. Quando parava para recuperar o fôlego, rezava. Torcia para que o bom Deus fosse realmente bom e a tirasse dali o mais rápido possível.

Em meio às preces, pôde ouvir, ao longe, os latidos de um cachorro. Cheia de esperança, usou o pouco de força que restava para gritar mais alto.

Atentos à movimentação estranha do animal, os bombeiros começaram o delicado processo de escavação da região.

Lá embaixo, era impossível continuar com os gritos.

IX
Só memórias.

Para ler ouvindo: Despertar – Rafael Fontana

Esta crônica faz parte do Music Experience