Lolita

Vladimir Nabokov
Publicado em 1955
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** Esta crítica contém spoileres**

Como pode uma coisa ser doentia e genial ao mesmo tempo?

A palavra genial tem sido usada com frequência nesses tempos de internet, na maioria das vezes de forma exagerada. “Veja este vídeo genial”, “Nossa, que ideia genial”, “Genial esse seu comentário”. Em minha opinião, genial é um adjetivo que precisa ser usado com parcimônia. Ele indica uma coisa extraordinária, muito acima da média e que é capaz de te deixar de boca aberta. Dito isso, é sem peso na consciência que afirmo com a boca cheia: Lolita é genial.

Escrito em inglês pelo russo Vladimir Nabokov (lembrem-se disso, pois é importante), Lolita conta a história de Humbert Humbert, um quase quarentão que tem afeição sexual por meninas pré-adolescentes – em resumo, um pedófilo. Mas não é por qualquer menina. Ele só se sente atraído pelas ninfetas.

Entre os nove e os quatorze anos de idade, ocorrem donzelas que, a certos viajantes enfeitiçados, duas ou muitas vezes mais velhos que elas, revelam sua verdadeira natureza que não é humana, mas nínfica (isto é, demoníaca); e essas criaturas predestinadas proponho designar como “ninfetas”.

Quando ele sai da Europa rumo aos Estados Unidos, acaba se hospedando na casa de Charlotte Haze. Viúva, ela tem uma filha de doze anos chamada Dolores (só na linha pontilhada. “Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita”), pela qual Humbert se “apaixona” imediatamente. A partir de então, ele começa a fazer de tudo para tê-la.

LO-LI-TA

Sim, é um romance que fala sobre pedofilia. Mas antes que vocês fechem a crítica e o livro por puritanismo e princípios, quero ter a chance de explicar porque achei tudo tão genial. Na verdade, boa parte dessa genialidade vem do próprio Nabokov, que conseguiu fazer de Humbert um personagem detestavelmente ambíguo.

O livro é escrito em primeira pessoa pelo próprio Humbert, um narrador de prosa envolvente e extremamente irônico com as situações do mundo. Por ter vindo da Europa para a América (como Nabokov também fez), ele apresenta o modo de vida norte-americano com um sarcasmo único, debochando das pessoas e das situações. É uma forma de narração bem humorada e que conta vários pontos a favor do livro.

Além disso, ele é um narrador ciente da situação de pedofilia que comete, chegando a dizer em vários momentos que foi o responsável por estragar a vida de Lolita, mas que sempre a amou. Isso sem falar de todas as vezes que ele zomba de si mesmo e da situação em que vive, contando para o júri os problemas que passou e como teve que resolvê-los. A parte em que ele está casado com Charlotte, então, é um rio de sarcasmo com a situação e de deboche com a mulher.

Arrancou a casquinha do joelho e comeu

Somando-se a todos esses pontos já ditos sobre o narrador, logo no início do livro descobrimos que ele está contando a história para um júri. Isso faz com que tudo que seja dito dali para frente seja considerado extremamente parcial. Humbert é um narrador não confiável e precisamos ter isso em mente o tempo inteiro. Ele diz aquilo que interessa para ele e ignora outros pontos importantes. Cita de relance, por exemplo, que esteve em um sanatório por dois anos. Seria uma informação relevante, mas ele não dá a mínima importância para isso.

E aqui eu trago os narradores de Machado de Assis para ilustrar melhor o que eu quero dizer. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, temos um narrador sarcástico e irônico que permeia toda a história e se torna um personagem à parte. Já em Dom Casmurro, a história é narrada pelo pouco confiável Bentinho, que distorce a história de acordo com os próprios interesses.

Por isso, quando Humbert fala sobre as insinuações sexuais de Lolita para cima dele, provavelmente é ele tentando tirar sua culpa. Sabemos que é tudo fruto de sua imaginação pedófila, mas ele tenta nos convencer de que não é bem assim. Eu assisti a um vídeo antes de fazer essa crítica que fala um pouco sobre a ideia do pedófilo romântico. Nesse tipo de pedofilia (que Humbert teoricamente se encaixaria), a pessoa realmente acha que ama a criança. Isso faz com que um simples toque de mãos seja considerado como um gesto sexual e o pedófilo se sente encorajado.

Mas de acordo com a narração nada confiável de Humbert, ele nunca fez nada sem o consentimento de Lolita. Ele tenta mostrar isso tanto na primeira relação sexual dos dois quanto dali para frente, quando ele conta as diversas vezes que a menina fez jogo duro e ele não forçou a barra para cima dela. O narrador também dá a parcela de culpa para Lolita, que inclusive já não era mais virgem (perdeu a virgindade com um menino mais ou menos da idade dela no acampamento de férias) quando eles partem para uma viagem juntos. Segundo Humbert, ela provoca, se insinua e se joga para cima dele. E ele, louco de amores, é incapaz de resistir.

Coitado do Humbert, não conseguiu resistir [/ironia]

Por isso é um livro tão bom. Ele não passa a mão na cabeça de um pedófilo, como muitos pensam antes de ler. Ele condena essas ações e mostra um narrador patético, que tenta o tempo inteiro convencer um júri de que ele está certo em toda essa situação. E isso só funciona porque o livro é muito bem escrito, méritos totais para o Nabokov.

Apesar disso, há alguns pontos que não me agraram tanto, principalmente na segunda parte. Aliás, esqueci de falar, mas o livro é dividido em duas partes: a primeira começa com Humbert conhecendo Charlotte e Lolita e termina quando Charlotte morre e Humbert passa a viajar de carro com Lolita pelos Estados Unidos. A segunda começa descrevendo estas viagens e termina com o motivo pelo qual Humbert está preso, tendo que contar sua história para um júri.

Nessa segunda parte, Nabokov tende a ser muito descritivo durante as partes sem diálogo e ação. Eles passam dois anos viajando pela estrada sozinhos e o autor faz questão de narrar os mínimos detalhes de lugares que visitaram e o que fizeram. Gasta páginas e páginas com coisas que não são relevantes para a história geral, atravancando o ritmo da leitura, que vinha muito bom até esse ponto.

Vale lembrar que Nabokov é russo, portanto o inglês não é sua língua materna. Lolita foi um dos primeiros livros que ele escreveu em inglês, o que mostra o domínio que ele tinha da língua não nativa e da narrativa. A forma como algumas frases são construídas e como as ideias são colocadas no texto mostram o quanto o autor era erudito e sabia mexer bem com seu material de trabalho, as palavras.

Como análise final, só posso dizer que Lolita é uma história doentia e moralmente condenável, mas genial pela forma como é contada.

“A calcinha entrou no rabo, me ajuda a tirar?” NABOKOV, Vladimir. 1955.

A edição

Li a versão da editora Alfaguara, que possui uma capa bem bonita, mas que segue o padrão Alfaguara de capas. Também possui um posfácio bem legal, escrito por Martin Amis. O único problema são as várias frases em francês durante a história. Nabokov era fluente em inglês e francês (além do russo, lógico), mas nós, leitores do Brasil, não temos tanta familiaridade com a língua. Não custava nada ter colocado notas de rodapé com as traduções das frases e me poupar de correr para o Google tradutor.

“Tá vendo, Lolita. Olha aquele idiota reclamando que não sabe falar francês.”

Sobre o “amor

É difícil acreditar na tese de que Humbert realmente amava a Lolita e que tudo foi feito em nome do amor. Em vários momentos ele demostra ciúmes e tenta protegê-la ao máximo, mas tudo faz parte da psicopatia. Não é a toa que eles praticamente não se fixam em um lugar e, quando o fazem, é sob intensa supervisão do “pai”.

Mas isso tudo é mostrado de uma forma muito limpa. Não há nenhum palavrão ou cena de sexo, por exemplo. O Nabokov sabe que descrevê-las seria até mesmo pior para o caso que Humbert tenta defender, pois o que importa ali é o “amor”, não a relação carnal que eles tiveram. Mas, mesmo que ela tivesse consentido, continuaria sendo um crime.

E a maior declaração dessa psicopatia está no final do livro, quando ela já passou da fase ninfeta e está grávida de outro homem. É nessa hora que ele fala: “Faço questão de que o mundo saiba o quanto eu amei minha Lolita, aquela Lolita, pálida e poluída e prenhe de um filho alheio, mas com os olhos ainda cinzentos, os cílios ainda fuliginosos, ainda acaju e amêndoa, ainda Carmencita, ainda minha”. Ou seja, ele só a “amou” enquanto ela ainda era uma criança – sem defesas para o pedófilo.

O início

Considerado com um dos melhores inícios de livros de todos os tempos (e eu concordo, é realmente fodarástico), o primeiro capítulo de Lolita conta exatamente tudo que acontece no livro, porém de forma sutil. Ele mostra claramente toda a fascinação que Humbert tinha por Lolita, fala que era um caso de pedofilia, deixa claro que os dois tiveram relações sexuais e ainda conta que Humbert está preso por conta de um assassinato. A história inteira do livro ali, no primeiro capítulo.

Já o falso prefácio dá pistas mais importantes ainda. Ele revela que Humbert morreu na prisão antes mesmo de ter o julgamento e, pasmem, fala de relance – como sem dar importância para o fato – que Lolita morreu no parto de sua primeira criança. Ou seja, ela morreu antes que o Humbert soubesse do ocorrido. Tudo isso sendo contado logo nas primeiras páginas.

Os filmes

Há duas adaptações de Lolita para o cinema, sendo uma do Stanley Kubrick, em 1967, e outra do Adrian Lyne, em 1997. As imagens que ilustram este post, inclusive, foram todas retiradas dessas obras. Assisti às duas antes de escrever esta crítica e posso dizer que nenhuma consegue captar a dualidade presente no personagem do Humbert Humbert.

Como não há o recurso da narrativa em primeira pessoa, os filmes falham no retrato da Lolita, que acaba muito mais sexualizada do que nos livros. Continua sendo um caso de pedofilia, mas os dois mostram uma garota muito mais insinuante do que no livro, o que pode ser um grande problema para o entendimento geral da obra.

That’s all folks!

Lolita
Vladimir Nabokov
Alfaguara, 2011 (publicado originalmente em 1955)
391 páginas
Tradução: Sérgio Flaksman