Com muitos spoilers sobre o livro
O pacifista
John Boyne
Publicado em 2011
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Sou aficionado por obras sobre as Grandes Guerras. Se descubro que um romance/livro/seriado é ambientado nestes cenários, minha expectativa atinge níveis astronômicos e preciso consumi-los na mesma hora. Geralmente as ficções tendem a se concentrar na Segunda Guerra, pois é nela que temos um inimigo claro e uma motivação humanamente aceitável para as ações. Por causa disso e do contexto que a cerca, sem uma motivação tão clara para os ataques, a Primeira Guerra acaba sendo deixada de lado pelos romancistas, cineastas e produtores de tv.
Então foi com alegria que vi que este livro do John Boyne falava justamente sobre ela. A propósito, não é o primeiro livro do autor que leio que fala sobre guerras. Em O menino do pijama listrado, os horrores dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial são retratados de forma singela e delicada através dos olhos do menino Bruno. Já em O pacifista, o retrato é mais cruel e narrado por uma pessoa que participou diretamente dos combates durante a Primeira Guerra.
Estou falando de Tristan Sadler, um jovem que foi expulso de casa aos 15 anos e se alistou no exército inglês aos 17. Sempre muito recluso, durante o período de treinamentos ele acabou se tornando amigo de William Bancroft. Desculpa, se tornando amigo é um eufemismo. Ele se apaixonou por William Bancroft e precisou conviver com essa paixão em plano início do século XX, quando a homossexualidade não era bem aceita e podia até ser punida legalmente.
A narrtiva começa um ano após o fim da Guerra (1919), quando Tristan entra em contato com a irmã de Will, Marian, para lhe entregar as cartas que foram enviadas ao irmão durante a Guerra. Só com essa informação já ficamos sabendo que o William morreu. E logo depois ficamos sabendo que o Tris tem alguma coisa a ver com isso, já que ele se sente profundamente culpado. Com isso, temos dos dois grandes temas para serem trabalhados no livro: a história dos dois e, em paralelo, o que a Guerra pode fazer com a cabeça de quem passou por lá.
O livro é narrado em primeira pessoa e esses dois arcos narrativos (a Guerra e a entrega das cartas) são contados em capítulos diferentes. O mais interessante é perceber que nos capítulos em que Tristan conversa com a irmã de Will, os verbos são todos usados no passado, mesmo a história sendo no presente de 1919. Já os acontecimentos de 1916 são narrados no presentes, mostrando o quanto as memórias dessa época são vivas na mente de Tris.
E John Boyne faz neste livro uma coisa que ele costuma fazer em suas outras obras, que é não entregar a história de uma só vez. Em determinado momento da história, por exemplo, Tristan e Marian conversam sobre o rapaz morto e discutem que a cidade inteira o vê como um covarde, mas que na verdade ele não foi. O porquê disso só será contado mais à frente na história. Porém esta não é a única vez que isso acontece, sendo um recurso bastante utilizado.
Outro ponto importante é a delicadeza e a discrição com que o amor do Tristan pelo Will é conduzido. Em nenhum momento John Boyne afirma com todas as letras: Tristan é gay. Porém isso é revelado em pequenos atos desde o início, seja na relação com o amigo de infância ou quando ele descreve o Will, que passam também pelo motivo dele ter sido expulso de casa até o desentendimento que ele tem com Will logo que são mandados para a Guerra.
Esse desentendimento é causado porque, ao fim do treinamento, Tristan e Will transam. Seguindo a linha delicada e discreta do livro ao abordar este assunto, nada é descrito com detalhes. Apenas acontece. E Will fica com nojo do que acabou de acontecer, mesmo tendo sido ele a tomar a inicativa.
Isso é explicado pelo fato de que, na época, não era aceito ser homossexual. Tristan foi expulso da escola e de casa por ter beijado o seu até então melhor amigo. Após o sexo, Will não quis mais falar com ele porque considerava aquilo errado. E nesse ponto eu entro no campo da especulação e digo que ele só rejeitou o Tristan porque era incapaz de aceitar os seus sentimentos. Logo ele, que era tão cheio de convicções.
Até porque o tal pacifista do título do livro se refere a Will, que se recusou a lutar durante a Guerra por ter visto os horrores que eram cometidos por lá. Se recusar a lutar também era um crime grave e o personagem arcou com todas as consequências desse posicionamento, partindo o coração de Tristan no processo e tendo o coração partido em contrapartida.
É aqui que paro para falar dos horrores da Guerra. Para eles o John Boyne não utiliza a delicadeza e a discrição que destinou para a homossexualidade de Tristan. Para quem não se lembra, a Primeira Guerra foi marcada pela presença das trincheiras e dos combates bem próximos. Bom, o ambiente de uma trincheira não era o mais confortável de todos (as fotos deste post mostram isso), tendo os soldados que conviver com animais (pulgas, piolhos, ratos e outros bichos), com a falta de higiene e de alimentação e com a possibilidade de levarem um tiro na cabeça a qualquer instante.
Na cena que é a gota d’água para Will decretar seu pacifismo é que vemos o maior horror da Guerra: são jovens que estão lutando contra outros jovens por uma causa que nem é deles. Quando Will captura um soldado alemão, os outros companheiros decidem que vão matá-lo enquanto Will argumenta que ele é prisioneiro de guerra, não oferece perigo e não precisa ter esse destino. O prisioneiro é tão moleque quanto os garotos ingleses e, a todo o momento, implora para que eles o soltem, que ele só quer voltar para casa e que precisa voltar para a mãe e o pai. Chega até a mostrar uma foto dos dois, mas não adianta. Ele é morto na frente de Will e Tristan.
Essa cena mostra o quão cruel pode ser uma guerra. Naquela época, muita gente não pedia para estar ali. Não era uma guerra deles. Era algo pela pátria, por mais intangível que seja a ideia de pátria. No seriado Band of Brother há uma cena específica, logo nos primeiros episódios, que retrata isso muito bem. Os soldados americanos acabam de chegar na França e capturaram um soldado alemão. Então um dos norte-americanos começa a conversar com o alemão e descobre que, na verdade, ele é americano e da mesma cidade que ele, mas precisou se alistar porque os pais eram alemães. Quando a conversa termina e o soldado norte-americano sai, só se ouve um tiro, o que indica que o jovem que estava a poucos instantes com ele e que não tinha nada a ver com o regime nazista foi morto apenas por estar do lado contrário.
É essa soma de tensões de guerra e tensões amorosas que faz com que o final do livro seja tão impactante. O discurso desesperado do Tristan para o Will, dizendo que o ama, nada mais é do que o discurso de um moleque que está exausto daquele ambiente e quer colocar os sentimentos para fora. Do mesmo modo que a recusa de Will também reflete o estado dele naquele momento e o medo de assumir qualquer tipo de relação homossexual em um mundo como aquele. Os dois são duros (that’s what she said) em suas declarações e é difícil colocar a culpa em algum deles.
Se for para eu tomar partido, tendo a concordar com o Tristan. Porém, naquela situação, eu nunca pegaria uma arma e faria parte do pelotão de fuzilamento da pessoa que amo, mesmo ela tendo quebrado meu coração minutos antes. É uma atitude extrema e que guia as ações do personagem durante todo o encontro dele com a Marian e também no futuro. Não é um final feliz para uma história de amor que também não é feliz. “Duas vezes apaixonado e duas vezes destruído por isso”, diz o Tristan. E é verdade. O último capítulo, então, não é nenhuma redenção para o personagem principal. É um final amargo para uma história igualmente amarga.
No fim, é mais um livro fantástico do John Boyne. Ele nem é tão grande em tamanho e essa crítica ficou desproporcional com o número de páginas. Mas quando eu vejo o quanto ele me fez pensar, vejo que está completamente proporcional. E acho que nem consegui falar tudo que senti. Culpa do John Boyne.
O pacifista (The absolutist)
John Boyne
Companhia das Letras, 2012 (originalmente em 2011)
302 páginas
Tradução: Luiz Antônio de Araújo
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.